Um conto de Rui Guilherme

Pequenas Gentilezas
Rui Guilherme*

Krishnya e Avashta, duas belas moças, irmãs concebidas pela mesma mulher descendente do Nagaraja, o Rei Serpente que nela se manifesta pela prudência e grande habilidade nos negócios de compra e venda de jóias. O nome dessa mulher tornou-se impronunciável depois que o marido dela, que lhe dera quinze filhos e filhas, renunciara à vida mundana pra tornar-se asceta e músico, tocador de flauta yoga e com voto vitalício de celibato.

Corria o mês Shravam – no ocidente, julho/agosto. Aproximava-se o dia do festival Nagapauchami, em que se comemora a data em que o deus guerreiro Krishna (hare, Krishna!) conquistou a cobra naja Kalyia, venerada na família de Krishnyia e Avashta, as moças referidas neste relato.

As negociações tinham sido muito bem procedidas pelo casamenteiro. O dote da noiva Krishnyia tinha sido estipulado em quatrocentas peças de ouro. Isto iria assegurar ao noivo, também de casta tradicional e adorador de Ganesh, o Deus Elefante, a possibilidade de estabelecer seu próprio negócio. Ganesh, sabe-se, tem como guardião a cobra-rei, que se mantém ao seu lado com seu capelo inflado, as presas mortais à mostra.

O yogi, pai de Krishnyia e Avashta, iria tocar flauta nas festividades religiosas em homenagem à divindade serpente.

Na cultura Vishnava, à qual se prendiam as famílias dos noivos, a cobra-rei surgiu como Balarama, que depois se expandiu  como Ananta-Sasha. De natureza divina, Ananta-Sasha não é um ser materializado, porém, de sua radiação, vieram as serpentes. Estas, são protetoras das nascentes e das águas subterrâneas, mas também das jóias, do ouro, dos metais e pedras preciosos, do dinheiro. Matar uma cobra, sobretudo uma naja, na cultura Vishnaja, faz com que a pessoa se torne estéril: fica-lhe negado o direito de procriar, tornando-se seu nome impronunciável.

Pela tradição, os noivos só se conhecem depois do casamento. Por essa razão, a bela Krishnyia, nem ela, nem sua irmã Avashta, podiam saber que eu, autor deste relato, era o prometido de Krishnyia, coisa que eu próprio ignorava.

Embora consciente de meu compromisso, e disposto a cumpri-lo, ao ver na procissão as duas moças, senti-me fortemente atraído pela que estava de sari vermelho-sangue, tendo ao lado dela uma outra que vestia amarelo-ouro. Fiquei empolgado quando vi que as duas me enviavam olhares brejeiros, cochichando entre

si.

A multidão se avolumava, permitindo-me aproximar-me das jovens até ficar bem pertinho e à frente delas. O empurra-empurra da multidão que buscava aproximar-se do palanque onde estavam os músicos e do altar onde os sacerdotes cumpririam os rituais de louvor a Nagaraja, o deus-serpente, fez com que a moça de vermelho, instintivamente, se apoiasse em minhas costas. Aquele toque me eletrizou. Cheguei a lamentar minha condição de noivo, que me impedia de melhor aproveitar aquele contato físico. Não podia adivinhar que a mão em minha espádua pertencia àquela com a qual iria em breve me casar.

A música da flauta, o repicar dos pandeiros e tamborins, os acordes das cítaras e alaúdes, tudo criava uma excitação coletiva que se tornava crescentemente palpável.

Quis dirigir palavra à moça que se apoiava em mim, mas isso seria um grande desrespeito. A mão dela, entretanto, fazia pressão suave e tentadora em minhas costas.

As  famílias, minha e de minha noiva, eram de casta superior. Nossas origens remontavam ao tempo da Era de Ouro, com o império fundado no século quatro dos cristãos por Sri-Gupta. Foi quando a Índia obteve extraordinárias conquistas, com os feitos do sucessor Chandragupta, que se tornaria marajadiraja, senhor e imperador. É nesse tempo que se deu a escrita do sânscrito, chamada Gupta-Brahmi, o que permitiu eternizar o Mahabarata, um dos maiores poemas épicos do mundo. Foi quando se inventou o jogo de xadrez, inspirado nos movimentos dos exércitos gupta, com suas torres de ataque, seus cavalos e elefantes de guerra – estes, no jogo, representados pelas peças denominadas bispos.

Sei que não podia, sei que não devia, mas, mesmo assim, dirigi-me à moça, esperando ouvir o chilrear de sua voz. Apesar do tabu, contava recebê-la como uma pequena gentileza, em retribuição ao apoio que vinha prestando às duas, aliviando-as da pressão feita pela multidão cada vez mais compacta.

De repente, abre-se um espaço, com as pessoas se empurrando em desespero. Uma enorme cobra-rei, não se sabe de onde vinda, soltara-se. Com seu capelo expandido, silvando furiosamente, a naja oscilava lentamente, o bote mortal já armado.

No pandemônio que se seguiu, o socorro não pôde ser prestado a tempo. Quando chegou,  Krishnyia já estava morta.

Só quando fui ao funeral é que pude saber que aquela pequena gentileza que a pressão daquela mão em minhas costas, sem que eu tivesse a chance de ouvir a voz da menina no sari vermelho-sangue, no festival do deus Nagaraja, o Rei Serpente, fora o único e derradeiro carinho que eu viria a receber daquela que me fora prometida em casamento.

O pânico era geral. Fui empurrado para fora do alcance das moças. O medo da cobra, que não podia nem mesmo ser enfrentada, quanto mais abatida, fez com que Krishnyia fosse atirada no raio de ataque da naja. A picada veio fulminante. A cobra cravou suas presas no rosto da jovem. Como se fossem seringas hipodérmicas, inocularam no corpo da menina uma dose de peçonha suficiente para matar um cavalo. Após a picada, a naja retraiu o corpo furiosa, silvando, a língua bífide agitando-se no ar.

*Rui Guilherme é poeta, escritor, autor de vários livros, juiz aposentado e atualmente mora no Rio de Janeiro

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