“Espia Só” – Ruben Bemerguy

“Espia Só”
Ruben Bemerguy

A pouquidade imantava os apelidos. Na minha época, pelo menos, era assim. Todos tínhamos um, fosse menino, fosse menina.

Lembro bem de alguns: o “Olho de Poço”, o “Caranguejo de Ganho”, o “Pateta”, o “Di rã”, o “Piquita”, o “Barrasco”, o “Cabeco”, o “Catuné”, o “Judeu”, o “Caimbó”, o “Tourão”, o “Grosso”, o “Mentira em Dia”, o “Abana Peido”, o “Manoel Calça Vesga”, o “Caroço de Bacaba”, o “Espia Só”, a “Mana do Céu”, a “Susi”, entre outros tantos que agora não me socorre a memória.

Era uma espécie de bullying, antes mesmo do bullying ficar famoso. Naquele tempo, famoso era só o apelido. Impiedosos, quanto mais nos incomodávamos, mais apelidados éramos. A criação do apelido era uma interpretação bem nativa e maliciosa do outro. Às vezes, uma forra, uma revanche, uma contrapartida pra aproximar o outro do ridículo espalhafatoso.

Mas a gente cresce. É uma pena, mas não há como custodiar a pouquidade para sempre. As notícias dos da pouquidade também se apequenam. Um, pouco sabe do outro. Isso, essa privação, era inimaginável na pouquidade. É que a arte de sofrer ausências não se adivinha nunca, nem na pouquidade, nem depois dela.

Outro dia, sem vê-lo há muitos anos, soube, por acaso, do “Espia Só”. Soube na dimensão da dor. “Espia” estava internado em uma Unidade de Terapia Intensiva. O nível de glicose do “Espia” seria o culpado pelo cárcere. Sim, as UTIs são isso mesmo. A exceção da voluntariedade, aquelas voluntariedades no modelo “não tem outro jeito”, de resto é, em tudo, um calabouço.

Lá – nas UTIs – reinam as posições corporais. Os verticais mandam. Identificam o curso dos corpos horizontais e os gerem. Além, em extraordinária arte divinatória, preveem e organizam a notícia do luto. Os horizontais são mandados e, o mais grave, sem nenhuma energia para sublevação.

Os verticais se vestem de branco assusta(dor). Os horizontais entregam à própria nudez um sentido falso e, ainda que famélicos de trajes, revestem o corpo em fronhas frequentemente desenganadas.

Verticais e horizontais só guardam em comum seus sofismas. E os guardam em segredos quase sagrados. Descobri-los –  o sofisma um do outro – é o maior desejo entre eles. Assim, dedicam-se a interpretar indícios para alcançar o paralogismo do outro. Tudo, claro, ao contrário do cárcere, de modo absolutamente involuntário, ainda que facilmente certificados a olhos de nus de uns – verticais – e de outros – horizontais. Na esfera dessa adivinhação não há hierarquia. Essa, eu diria, é a única igualdade em uma UTI entre verticais e a população carcerária a que me refiro.

Talvez por isso, não sabem os verticais, p.ex., que o açúcar no sangue do “Espia” é contemporâneo a própria existência dele. “Espia” sempre foi um delicioso doce de mamão verde feito pela vó Esther. Desde a pouquidade “Espia” assustava por ser assim.

Obediente aos padrões das ruas de Macapá, tez preta, forte, pequena altura, cabelo pixaim, nariz fino e arrebitado e dentes como esculpidos em marfim.

Espia era também nosso goleiro no time da praça. Dada a posição em campo, já se prevê, com razão, que Espia não executava as tarefas do futebol com habilidade e, por isso, goleiro, sempre goleiro. A fragilidade acrobata do Espia, entretanto, não desmaiava a sua alegria quando fazíamos um gol. Era o primeiro a nos abraçar, embora o mais distante dos atacantes, se assim se pode dizer. O abraço do Espia me abraça a vida toda, especialmente agora, bem longe da pouquidade.

Ao contrário do futebol, Espia era imbatível na peteca e no celotex, esse, chamado hoje, parece, futebol de mesa. Espia colecionava os troféus que nós mesmos fabricávamos. Em regra, troféus de lata e cera de vela usada. Valia muito. Nossa mãe do céu!

Tenho muitas lembranças do Espia. Muitas mesmo. Não esqueço que os da pouquidade costumavam dizer “não levar desaforo pra casa”. Espia dizia, sua mãe havia cavado um poço no quintal da casa só pra ele desaguar as falas de atrevimento. Do poço, segundo o Espia, não brotava água, mas luz de lua. Para ele e sua mãe, água só amazonava. Luz de lua curava. Um santo remédio de vida. Hoje entendo bem a filosofia da mãe do Espia e do Espia.

Soube na dimensão da mais intensa dor do último suspiro do Espia no mundo dos verticais. Pra mim, Espia voltou ao poço que sua mãe cavou no quintal da casa. Se a água só Amazona, a luz de lua cura.

Bendita a sua memória – Z’L.

(Ruben Bemerguy é advogado e membro da Academia Amapaense de Letras)

  • Exatamente assim…Porquê a gente cresce…muitos disseram…mas ninguém conseguiu evitar…
    Para o texto…meus aplausos de pé!

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