Quem foi que disse que essa mulher não voa? 

Quem foi que disse que essa mulher não voa?
Alcione Cavalcante*

Gal atravessou, ainda atravessa e vai continuar a atravessar minha vida até o fim dos meus dias.

Ali pelo final da década de 60 e início dos anos 70, em casa, tivemos o primeiro contato com o trabalho de Gal. A minha irmã Alcinéa foi a responsável pela apresentação aos irmãos do primeiro manifesto musical do Tropicalismo, o LP Tropicália ou Panis et Circensis, onde aquela que viria a ser uma das mais importantes vozes do planeta emerge, límpida, juntamente com Caetano, Gil, Tom Zé Nara Leão.

O impacto se deve em parte ao fato de que à época ouvíamos em casa, a bossa nova de João Gilberto e Tom, clássicos como Mozart e Chopin, preferidos do nosso pai Alcy Araújo, além de Elza Soares, Ataulfo Alves, Miltinho e Doris Monteiro, estes mais ao feitio de nossa mãe Delzuite Cavalcante. Ou seja, em tudo muito diferente do conteúdo estético de Panis, de Mamãe, Coragem, composição de Caetano e Torquato.

Mas o encanto mesmo veio, definitivo, com a bolacha Gal Costa, com Baby e Não Identificado, ambas compostas por Caetano. A primeira feita para Bethânia e segunda pra Gal, que acabou, ambas, por força das interpretações apropriadas à Gal.

Posteriormente, em 1973, ainda debutando em Curitiba, onde estudei Engenharia Florestal, deparei-me com o LP Índia, aquele onde Gal, pra desespero dos puritanos de plantão, aparecia de tanga na capa, e que a censura impôs sua comercialização num envelope plástico de cor azul, levemente mais pálida que a “seda azul do papel que envolve a maçã”, como definiu Caetano muito mais tarde em Trem das Cores. Talvez a peça publicitária involuntária mais eficiente, promovida pela ditadura em prol de um desafeto político da resistência cultural. O LP vendeu demais, por sua qualidade evidentemente, mas também pela força do marketing ditatorial.

De Índia destaco “Dá Maior Importância”, uma canção de quase namoro feita por Caetano pra Gal, a esplêndida “Presente Cotidiano” do Luiz Melodia, e a guarânia “Índia” em tudo diferente das intepretações da minha infância.

Outro momento que guardo foi o Show Doces Bárbaros, que tive a oportunidade de assistir no Teatro Guaíra em Curitiba, nos idos de 76, quando já se aproximava o fim de minha estada na cidade. Ver ali, no que era até então um dos melhores teatros da América Latina, Caetano, Bethânia, Gal e Gil juntos foi um momento de intensa felicidade, afinal juntar quatro talentos incrivelmente diferenciados artisticamente, ainda que de mesma cepa, não é muito simples e fácil. Mesmo a plateia conservadora da idem Curitiba da época, se rendeu e ao final explodiu em reconhecido aplauso ao quarteto. Guardei durante muitos anos o canhoto do ingresso desse evento, do qual tenho a bolacha até hoje. Particularmente gosto muito da canção “Eu te Amo” de Caetano onde Gal exuda um mar de carinho e ternura.

Outra coisa legal aconteceu com o CD Mina d’água do meu canto (1995), que se perdeu de mim e que vim a resgatá-lo ao desistir de reparar um aparelho som que não possuía peça de reposição no Brasil. O mesmo se encontrava no local de reprodução de CD, intacto mesmo anos depois. Produzido por Jaques Morelenbaum e formado exclusivamente por músicas de Caetano e Chico Buarque é um dos que guardo com cuidado e carinho, do qual destaco “O Ciúme” de Caetano e a apaixonada “Futuros Amantes” do Chico.

A última apresentação que vi de Gal Costa foi a live comemorativa de seus 75 anos, onde apesar de alguns problemas técnicos mostrou a incrível cantora que Gal Costa sempre foi desde seu primeiro disco.

Há pouco tempo li “Não se Assuste Pessoa! As Personas Políticas de Gal Costa e Elis Regina na Ditadura Militar”, de Renato Contente, o qual recomendo a leitura a todos interessados na trajetória de Gal. O nome do livro é emprestado da música “Dê Um Rolê” de Moraes e Galvão, que Gal também gravou (Enquanto eles se batem/Dê um rolê e você vai ouvir/ Apenas quem já dizia/Eu não tenho nada/Antes de você ser eu sou/Eu sou, eu sou o amor da cabeça aos pés).

Por fim lembro de versos da canção “Sem Medo nem Esperança” de Arthur Nogueira e Antônio Cicero), do CD Estratosférica onde Gal manda o recado: “Nada do que fiz / por mais feliz / está à altura / do que há por fazer”.

Gal nos deixou, não sem antes, em seu último show, em setembro, nos pedir para votar direitinho, destacando seu compromisso com a democracia, fazendo o “L”, para delírio dos presentes. LeGal.

*Alcione Cavalcante é engenheiro florestal e cronista

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