Artigo dominical

As cicatrizes
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

 Naquela tarde o calor era muito grande. Sem pensar duas vezes a criança pulou no igarapé que passava bem perto de sua casa. Estava acostumada a aproveitar do refrigério da água. A mãe olhava tudo pela janela e viu, com horror, um jacaré aproximar-se perigosamente do menino. Imediatamente correu para o igarapé, gritando com toda a voz que tinha. A criança ouviu e logo nadou para a beira onde estava a mãe, mas o jacaré já tinha agarrado as suas pernas.  O animal era muito forte, mas a mãe estava decidida a salvar o seu filho. Ouvindo os gritos, um caçador, que passava por perto, percebeu o perigo e conseguiu atirar no jacaré, matando-o. A criança tinha ficado gravemente ferida, mas estava salva. Em poucos meses voltou a caminhar. O fato se espalhou e, mesmo depois de muito tempo do acontecido, as pessoas pediam ao menino para mostrar as cicatrizes das presas do jacaré. O menino suspendia a calça e mostrava os sinais das feridas daquele dia pavoroso. Imediatamente, porém, ele arregaçava também as mangas da camisa e orgulhosamente mostrava, nos seus braços, outras cicatrizes. Eram marcas deixadas pelas unhas da mãe que o havia apertado com todas as suas forças naquela hora.

Uma história de amor e de heroísmo como tantas outras que, com certeza, o nosso povo conta sem cansar, porque faz bem lembrar a coragem e a determinação das pessoas que não se poupam por uma causa justa e nobre. Nós cristãos acreditamos também que Jesus nos tenha amado ao ponto de oferecer livremente a sua própria vida. Ele mesmo se apresenta, no evangelho deste domingo, como o “bom pastor”, aquele que não foge quando chega o lobo, mas o enfrenta até dar a própria vida para defender as ovelhas. Diferentemente, o pastor-mercenário abandona o rebanho porque não está interessado com a vida das ovelhas, mas sim com o dinheiro que ele ganha. É movido pelo interesse e não pelo amor. Quando escutamos estas palavras do evangelho não temos como negar que o nosso pensamento corre imediatamente aos “pastores” de ontem e de hoje: os homens e as mulheres que encontramos nos caminhos da vida. Numa hora difícil, de sofrimento, de incerteza e de desespero, é uma graça de Deus quando aparece alguém para estar ao nosso lado. Esses são os “bons pastores” da vida.

Claro que devemos pensar também nos padres, nos religiosos e religiosas, nos missionários, que atuam nas nossas comunidades, mas qualquer um de nós pode ser “bom pastor” para alguma ovelha sofrida que aparece à sua frente. Todos nós podemos dar um pouco da nossa vida, do nosso tempo e do nosso coração para quem está precisando. Os mercenários e  interesseiros, ao contrário, perguntam-se quanto vão ganhar se ajudarem os necessitados; o quanto vão faturar em publicidade; o quanto a imagem deles vai brilhar. Afinal, eles querem chamar atenção só para si. Os verdadeiros “bons pastores” agem de outra forma: preocupam-se mais com a vida dos outros do que consigo mesmos. Ficam felizes somente quando a vida das ovelhas está preservada e garantida.

Essas atitudes generosas e solidárias, porém, não deveriam aparecer apenas em casos extraordinários. O amor fraterno não pode ser reservado a atos de heroísmo. Todo dia deveríamos fazer o bem e todo dia deveríamos ajudar na construção de uma sociedade mais justa e fraterna. Nesse sentido, devemos entender também as vocações sacerdotais e religiosas. São chamados especiais a seguir o Senhor Jesus, mais de perto, para manter viva e atual a sua memória, a sua presença viva, o seu exemplo. Quem se dedica inteiramente à evangelização e à caridade, vivendo na pobreza, castidade e obediência, o faz porque atraído pelo amor de Jesus, o único Bom Pastor, modelo de todos os pastores e de todos os que doam a sua vida a serviço do rebanho. Nós rezamos pelas vocações sacerdotais e religiosas para que nunca faltem “bons pastores” para o rebanho. Precisamos mesmo de pastores, consagrados e consagradas, que ajudem a todos a ser fiéis no seguimento de Jesus.  No entanto devemos agradecer ao Pai porque também existem “pastores e pastoras” no meio do povo que vivem com generosa dedicação ao seu batismo na família, na profissão, no sofrimento, na solidariedade, na animação de grupos e de comunidades. Muitos deles são exemplo para os próprios consagrados, sabem aconselhá-los desinteressadamente da maneira e na hora certa. Amigos que sabem quando falar e quando calar; sabem ter muita paciência, também quando não são ouvidos e compreendidos. Tenho certeza que nas nossas paróquias e comunidade existem muitos bons pastores e pastoras, “pais e mães” de padres, religiosos e religiosas, que já salvaram vários deles dos assaltos de lobos e jacarés disfarçados de ovelhas. Também para eles e elas, hoje, a nossa oração e o nosso muito obrigado.                    

  • Uma história dessas parece bizarra aos olhos de um ecologista. Com certeza essa mãe e essa criança invadiram o território do jacaré para que ocorresse o ataque. Um jacaré jamais invade uma cidade para atacar um habitante dentro da sua casa, mas o homem faz isso com seu semelhante, pelo simples prazer de matar. O artigo, por acaso, demonstra ato de heroísmo para quem matar o autor de um latrocínio?

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