Meio-dia

Meio-dia
(Alcinéa Cavalcante)

Para onde vai
esse menino de andar tristonho
com uma camisa verde desbotada amarrada na cabeça?
Ele não caminha em direção ao sol.
Caminha sob o sol.
O sol queima.
O asfalto queima.
As lágrimas queimam.
Para proteger a cabeça tem uma camisa verde desbotada.
Para proteger os pés um par de tênis surrado.
Mas quem – ou o que – pode protegê-lo da tristeza que aflige seu coração
e se derrama em lágrimas queimando sua face?

Quando a gente se guiava pelas estrelas

Quando a gente se guiava pelas estrelas

“Olha! Olha!” Exclamava o menino apontando para o céu.

“Lá vai, lá vai”.

E todos olhavam e viam e falavam sobre o objeto que passava saltitante entre nuvens e estrelas.

Não. Não era um disco voador. Era simplesmente um satélite, provavelmente desses que ficam fotografando a Amazônia.

Diversão da meninada naquele tempo, quando a noite caía, era sentar na frente da casa e olhar o céu, caçar satélites e estrelas cadentes, procurar São Jorge na Lua e identificar constelações.

O telescópio era um canudo de cartolina.

Ah, tempo bom, quando a gente sabia se guiar pelas estrelas e sonhava ser astronauta para visitar outros mundos, brincar em outros planetas e, depois, voltar à Terra com as mãos transbordantes de estrelas.

Trazer também uns fiapos de nuvem para fazer algodão doce, pois que a vida, meu irmão, era uma doçura e plena de encantamento naquela rua sem asfalto, sem bangalôs, sem muros e sem televisão.

(Alcinéa Cavalcante)

Marte? Nem pensar!

Marte? Nem pensar!

Não , meu bem.
Desta vez não vou contigo.
Marte não me seduz.
A água de lá não tem o cheiro do mururé.

Em Marte, meu bem,
não tem flores,
logo não tem beija-flor.

Não tem mangueiras,
logo não tem aquela algazarra de periquitos
que inebria o poeta Fernando Canto.

Não tem praças, música, livros,
papel e caneta.
Não tem poesia nem poetas.

Li no jornal que os habitantes de lá
tem voz metálica
corpo engraçado
e cara esquisita.
São todos verdes, todos idênticos, todos estranhos.

Você quer ficar verde de susto, meu bem?
Eu não.

(Alcinéa Cavalcante)

Paisagem antiga

Paisagem antiga

Alcinéa Cavalcante

Quero de volta
a paisagem antiga da minha rua
com suas casinhas brancas
cobertas de palha
gamela no jirau
fogão de barro na cozinha
e passarinhos no quintal.

Quero de volta
aquela paisagem antiga
com a casa avarandada do Mané Pedro
e a casa sem pátio da Maria Banha.
Os meninos de pés descalços
jogando bola na rua sem asfalto
e as meninas de sapatinho branco
brincando de roda.
Quero de volta
a paisagem antiga da minha rua
com minha casa de venezianas cor-de-rosa,
minha mãe no alpendre
bordando flores nos lençóis
e minha avó rezando o terço.
Quero de volta
a paisagem antiga da minha rua
só pra sonhar de novo
os sonhos que sonhei na infância
quando o mundo era feito só de amor
e todos sabiam viver como irmãos.

Um domingo assim

DOMINGO
(Alcinéa Cavalcante)

Eu preciso de uma manhã
dourada de domingo
para sair por aí
assoviando numa bicicleta azul.

Eu preciso de uma tarde de domingo
enfeitada com arco-íris
para atar uma rede na varanda
e embalar meus sonhos
lendo Quintana
e ouvindo Caetano.

Eu preciso de uma noite clara de domingo
para sentar na calçada
desenhar o mapa das estrelas
e jogar conversa fora com os vizinhos.

E depois dormir
feito criança
sem compromisso
para o dia seguinte.

O Natal não mudou. Nós mudamos

Meu pai , Alcy Araújo Cavalcante  – o poeta do cais, dos marinheiros, dos anjos e das rosas – assistiu a passagem de muitos Natais. Ele nasceu em janeiro de 1924, na Vila de Peixe-Boi (PA), e em abril de 1989 partiu para mais perto dos anjos, de Deus e do Menino Jesus.

Certa vez ele me disse que o Natal não mudava. O Natal, disse ele, é a renovação do milagre do nascimento de Jesus. A manjedoura na gruta de Belém, com o Messias anunciado pelo Profeta do Velho Testamento.

O que mudou, disse-me, foi a humanidade. Mudaram as festas. Foi inventado Papai Noel e a oferta de lembranças estimulou a comercialização de presentes.

“O Natal saiu do recesso dos lares, do âmbito fechado da família. Passou a ser comemorado nos bares, nas boates, nos shows e restaurantes. Está estreitamente ligado à sociedade de consumo”, contou.

O chefe de família, dizia-me ele,  que presenteia a esposa com um moderno aparelho de televisão, está também se presenteando, o mesmo acontecendo com um pai que compra um ferrorama para o filho.

Mas ainda existem presentes individuais, singelos cartões, mensagens fraternais sinceras, embora a maioria seja um ato de relações públicas . O Natal, em si mesmo, não mudou. As igrejas ainda ficam lotadas de fiéis para os cultos ou missa. Onde é possível acontecem as ceias familiares e o sorriso das crianças. Do outro lado, há a fome e a tristeza. Nisto o Natal não mudou.

A humanidade, nós todos, mudamos. Às vezes ficamos desesperados, egoístas, medrosos ou coléricos. Mas ainda existe a esperança  em um mundo melhor, mais justo, mais fraterno. Esperanças que se renovam a cada Natal.

É o Menino trazendo, com teimosia e  persistência, a sua bela mensagem de Amor. O Natal não mudou. Nós mudamos e continuaremos em mutação até a consumação dos séculos.

Meu pai Alcy Araújo tinha alma de menino. Menino que acredita no Natal e na Esperança. E eu também.

Minha primeira lembrança de Copa do Mundo

A primeira lembrança que tenho de Copa do Mundo é de 1962, quando o Brasil foi bicampeão no Chile.
Estávamos no Rio de Janeiro mamãe, eu e meu irmão Alcione. A cidade maravilhosa toda enfeitada. Eu era muito criança ainda e quase nada entendia do que se passava. Sabia apenas que o Brasil estava participando de algo muito importante e que todos torciam pelo sucesso.
Só se falava nisso, mas eu nem dava trela. Era conversa de adulto e eu só queria brincar.
No dia que a Seleção chegou ao Brasil trazendo o título foi a maior festa. O povo se amontoando nas ruas e nas janelas dos edifícios para saudar os bicampeões do mundo. Mas para mim, tão criança ainda, o espetáculo foi a chuva de papel picado que caía dos edifícios e foi essa chuva que guardei na memória. Que coisa linda para uma criança ver. Eu nem olhava para o carro aberto que conduzia os jogadores, nem lembro como estavam trajados. Eu só olhava para cima, encantada com a chuva de papeizinhos coloridos.
Não pergunte em que rua ou avenida estávamos para ver o desfile da Seleção. Sei que fomos – eu e meu irmão – com minha mãe, pois ela era muito fã do goleiro Gilmar e do lateral Djalma Santos, por isso queria vê-los de perto e aplaudi-los.

Só muitos anos depois me interessei pelas histórias da Copa. Principalmente dessa em que vi pela primeira vez uma chuva de papel picado.

Pois bem, em 1962 o Brasil foi bicampeão com um timaço onde formavam Gilmar, Djalma Santos, Nilton Santos, Didi, Zagalo, Vavá, Pepe, Bellini, Zito, Garrincha, Pelé e Amarildo.
O Gilmar, de quem minha mãe era super fã, foi um dos maiores goleiros do Brasil. Aliás, do mundo. Foi considerado pela FIFA como um dos vinte maiores goleiros do mundo do século XX.

O Brasil fez uma campanha bonita. Foram cinco vitórias e um empate. 14 gols a favor e 5 contra. Venceu o México por 2 a 0; a Espanha por 2 a 1; a Inglaterra por 3 a 1; o Chile por 4 a 2; empatou com a Tchecoslováquia na primeira fase em 0 a 0.
A final foi no dia 17 de junho no estádio nacional do Chile com o Brasil sagrando-se bicampeão ao derrotar a Tchecoslováquia por 3 a 1. O placar foi aberto por Josef Masopust aos 15 minutos do primeiro tempo, mas dois minutos após Amarildo fez o gol de empate. O primeiro tempo terminou 1 a 1. No segundo tempo o Brasil entrou com mais garra em campo e aos 24 minutos Zito marcou o segundo gol do Brasil e aos 33 minutos Vavá fechou o placar.

Daqui a pouco, às 16h, o Brasil entra em campo em Catar para enfrentar a Sérvia. Já não sonho com chuva de papel picado; sonho com a vitória da nossa seleção nesse seu jogo de estreia e nos demais.

(Alcinéa Cavalcante em 24/11/2022)