De Glória Araújo

A Rede
(Glória Araújo)

A rede velha comeu foi fogo
com nós dois pra lá e pra cá,
O suor cobria nosso corpo
Ajeita a rede, balança a rede,
A rede querendo rasgar
E nenhum queria parar.

Eu rangia os dentes e gemia
Ele dizia: aguenta, meu bem,
Que já vou terminar.

Depois de muito esforço
puxamos a rede e o que vimos
valeu todo o sacrifício
O peixe era enorme
dava para o almoço e jantar.

De José Queiroz Pastana

Lucidez
José Queiroz Pastana

Quando olhei para o céu
Vi uma estrela a brilhar.
A lua ficou a me curtir,
E no céu da boca o paladar.

O mar, sereno em ondas,
Debatia-se na orla:
Quebra-mar, São José,
Do Marabaixo ao Laguinho.

O teu olhar luz candeia,
O espelho dos olhos vagueia.
Nas curvas do corpo bronze
Deposito meu amor carente.

Teu coração vida, rubi,
Até a flor de mel colibri.
Navegar na lucidez do amor
Para não perder a razão de viver.

Prazer, sou Maria

Prazer, sou Maria

Dá licença, seu moço,
que eu agora vou me apresentar:

Sou Maria,
mulher guerreira,
não puxo briga
mas não corro de bicho-papão
nem tenho medo de coroné metido em fardão.
Sou Maria,
mulher simples e humilde
mas tenho alguns tesouros.
Não sou dona do mar
mas conheço os segredos da floresta
e marimbondo de fogo não vai me ferrar.
Sou Maria,
mulher poeta e jornalista.
De noite escrevo versos,
de dia escrevo notícia.
Minha caneta é liberdade
a consciência o meu guia.
Sou doce, mas valente,
nem tente me calar
pois não tenho medo da sua gente.
Me ajoelho só pra Deus.
Santo e poeta eu olho com o coração
e político da tua laia
eu olho de cima pro chão.
Pra quem é do bem
eu digo: “Vem comigo, amor”
Pra quem é do mal
eu só sei dizer “Xô”.
Encerro minha apresentação
te fazendo um pedido:
Fica lá no teu quadrado
deixa em paz o povo tucuju
ou eu viro Maria mal-educada
e te mando…
(Alcinéa Cavalcante)

Imperativo – Um poema de Manoel Bispo

IMPERATIVO
Manoel Bispo Corrêa

Hora de atirar
pedras no rio
e esconder as mãos.
Hora de mergulhar
no vento frio
e driblar a solidão.
Hora de nem pensar
e apenasmente saber
o que vale sonhar.
Hora de retirar
a mordaça das palavras
e deixar que o espelho
reflita a prenhez da poesia.
(Do livro “Intátil” – Macapá, 2002)

Miserere

MISERERE
Álvaro da Cunha
A mulher operária tinha o ventre achatado pelo peso da fome. Levantei-lhe a cabeça, perguntei o seu nome e a sineta soou. Era a hora do almoço. A mulher abaixou-se, sacudiu o menino, o menino acordou. A mulher operária tinha o ventre achatado pelo peso da fome. Cuspiu sobre os seios – eram uns seios sem leite – e a criança mamou.
– Tomei nota em meu livro, e alguém protestou.
Outra vez fui às docas. Conversei com Maria, na “Pensão da Estiva, e Maria explicou:
O meu homem me obriga a trabalhar para ele. Chega tonto de sono, e eu tonta de amor. Nos seus lábios tem éter, licor, ambrosia, mas os beijos que trazem são beijos cansados, desses beijos pesados, de amargo sabor.
– Registrei em meu livro, e alguém protestou.
A menina passava. A roupinha de trapos, a carinha mirrada, o corpinho franzino. Dei-lhe um copo com água, pus-lhe as mãos no cabelo, e a criança chorou.
– Mencionei no meu livro, e alguém protestou.
No irmão da menina, os dois olhos abertos eram duas estrelas que a lama ofuscou. Ele estava tão sujo, e olhava o meu terno com tanto interesse, que o embrulho de peixe escorreu-lhe das mãos e ele nem reparou.
Recuei assustado; encerrei o meu livro e joguei-o nas águas, mas o livro boiou. Apanhei-o com nojo. Rasguei-o em pedaços. E a angústia passou.
– Para que registrar as misérias da vida?
– Para que registrar? … minha voz repetia
e ninguém protestou.

Um poema de Alcy Araújo – Rosa Sangrando

Rosa Sngrando
Alcy Araújo (1924-1989)

A rosa sangrava
como um poeta.
Uma rosa atropelada
por passos apressados
de operários na calçada.
A rosa sangrava
defronte do anúncio luminoso
amenizado pela luz da manhã
que nascia do mar.
Era uma rosa rubra
sangrando
sem jardim
sem mão mulher
sem os cabelos de Izaura.
Nunca mais esqueci
aquela rosa sangrando
como um poeta bêbado
despetalado na calçada.

Em noite de lua cheia

Em noite de lua cheia

Vamos namorar na praça, meu bem,
aproveitando este luar
que se derrama sobre a cidade.
Abraçados contaremos histórias
do espaço sideral
e embarcaremos numa nave brilhante
que nos espera no centro da praça.

Trocaremos juras de amor entre as estrelas
E lá do alto veremos a Terra
como um imenso bolo
confeitado com anelina azul-ternura.

Vamos namorar na praça, meu bem,
e embarcar na nave brilhante
que pousará na Lua
onde com um lápis mágico faremos um desenho.

Já pensou, meu bem, na surpresa dos astronautas
quando virem na lua
um coração com nossos nomes dentro?

(Alcinéa Cavalcante)

Um domingo assim

DOMINGO

Eu preciso de uma manhã
dourada de domingo
para sair por aí
assoviando numa bicicleta azul.

Eu preciso de uma tarde de domingo
enfeitada com arco-íris
para atar uma rede na varanda
e embalar meus sonhos
lendo Quintana
e ouvindo Caetano.

Eu preciso de uma noite clara de domingo
para sentar na calçada
desenhar o mapa das estrelas
e jogar conversa fora com os vizinhos.

E depois dormir
feito criança
sem compromisso
para o dia seguinte.
(Alcinéa Cavalcante)