Só tenha vergonha da sua pobreza se ela for de espírito…

Só tenha vergonha da sua pobreza se ela for de espírito…
Por Heraldo Costa*

Esse registro é de 1981. Eu com 13 anos e mano Heraclito Junior com poucos meses de vida, no colo, pois nasceu em dezembro de 1980. Ronaldo, segundo irmão mais velho, estava empolgado com uma máquina fotográfica e saia registrando vários momentos do cotidiano. Eu tinha chegado de fazer algum mandado pra mamãe.
Nesse tempo, além da escola, da venda de madeiras do papai que estava começando, ainda vendia chopp pela cidade. Ronaldo havia já saído do negócio. Quando tinha tempo ainda dava umas voltas de bicicleta, sentado no varão, acompanhado do amigo Paulo Nunes (que ainda mora na casa ao lado até hoje), poucos anos mais novo, que é esse garoto ao fundo com a mão na cintura.
O início dos anos 80 representa um limiar de oportunidades.
Nessa década conclui o ensino fundamental (1982) na escola Roraima. Conclui meu ensino médio no CCA (1985) estagiei no jornal fronteira do Pará (1985), tive meu primeiro e segundo emprego (1987 e 1988). Fui líder de jovens evangélicos no Buritizal e geral (86 e 87). Casei (1989). Enfim, não sabia eu mas Deus cimentava meu caminho pro futuro, enquanto também Ele preparava meus irmãos Junior, Renilda (tomando mingau no banco) e Renivaldo (a meu lado) para a vida.
Galibis 847, no Buritizal. A rua da mangueira. Era nosso endereço. Nessa casa, moraram os dez filhos com nossos pais.

*Heraldo Costa, juiz titular da Comarca de Tartarugalzinho

(Adoráveis) Invasores

Discretamente eles começaram a frequentar o quintal e, como ninguém se importou, eles passaram a se achar donos. Fizeram morada nas árvores, comeram algumas frutas e jogaram outras no chão.
Um dia avançaram mais e chegaram até a garagem, onde começaram a cantar e fazer festas. Ninguém os expulsou.
Não demorou muito um deles, talvez o líder do grupo, ousou mais: entrou sorrateiro na área de serviço. No outro dia voltou, comeu a ração dos cachorros e chamou seus comparsas para um banquete.
E como ninguém se importou abusaram mais ainda; invadiram a cozinha, se apropriaram da fruteira e bicaram mamão, bananas e outras frutas.
Da cozinha para a sala foi um pulo, ou melhor, um voo. E agora são os primeiros a chegar para o café da manhã e alegrar nosso amanhecer com seus maviosos cantos.
(Alcinéa Cavalcante)

Crônica de José Machado – Do “Bruxo do Cosme Velho”, infelizmente herdei apenas o sobrenome e as gafes machadianas…

Do “Bruxo do Cosme Velho”, infelizmente herdei apenas o sobrenome e as gafes machadianas…
José Machado*

Com a massificação das novas tecnologias, a escrita à mão é cada vez menos utilizada, as pessoas escrevem mais em teclados. Tecla-se no computador, smartphones ou se usa as telas touch screen. Mas nenhuma dessas maravilhas se compara a satisfação tátil de um papel e uma caneta.
De um modo geral, dependendo do grau de ensino somente as escolas ainda mantêm a escrita à mão no cotidiano. A caligrafia, é o registro da nossa individualidade, nos envolve numa relação sensorial, imediata e particular.
Como cada escrita é única, ela permite identificar a autenticidade de documentos e assinaturas, assim como criar ligações emocionais mais fortes entre as pessoas.
Sinto-me privilegiado, por haver tido uma educação de base muito forte, de qualidade, e sei quanto a escrita à mão foi importante na minha formação, principalmente o desenvolvimento das habilidades motoras e, pode ser benéfico em muitas outras áreas do desenvolvimento cognitivo, uma relação tateada de afetos.
Não planejo dia ou hora para escrever, teço a fantasmagoria da vida desde que haja uma súbita captação mental, sou movido a fazê-lo quando surge o insight, porque as memórias são fugidias.
Às vezes, não consigo lembrar em sua totalidade, e sob a forma de texto divergem das ideias iniciais. É, escrever ou silenciar, o que fazer diante da ideia?
É a vida que está em volta, é o ato de observar. Por isso, urge se colocar no papel aquilo que chega de repente…Fragmentos de pensamentos que se alinham em letras. Como texto quer dizer tecido, então a ideia gerativa, é se trabalhar através de um entrelaçamento de textura.
O início é vagaroso como um aquecimento, e os poucos, a velocidade aumenta e a escrita fica rápida. Dependendo da natureza do texto, uso duas canetas.
A escolha pelas cores das tintas, não é um mero adorno estético, é uma forma de conferir singularidade a certas situações, para sublinhar e dar destaque a partes importantes.
Realça determinadas frases e, serve para identificar e adicionar uma anotação. Quando faço o texto direto no meu notebook, utilizo a mesma técnica para alterar a cor dos blocos.
Concluído o rascunho, ponha-o de lado. Um determinado dia lembro e vou atrás e, aí então quando o leio, sempre acho algo sem sentido e, então começo o processo de revisão.
Cortar, acrescentar ou modificar palavras, frases, parágrafos, alterando, reescrevendo, apagando, incluindo, excluindo e ainda assim, tenho a impressão de que falta alguma coisa, não está como eu quero.
O esboço, constitui material privilegiado, denota os garranchos, a neura, o cansaço físico e mental, traçadas no calor da inspiração e emoção – letras redondas, compridas, deitadas ou tortas -revela as etapas de como um trabalho se realizou, do processo criativo, com rasuras e hesitações.
E as vezes, na ânsia de não deixar escapar o raciocínio, algumas frases ficam como prescrições médicas…Apenas a letra inicial seguida de uma linha tortuosa. Os caminhos que a mão trilhou, com desvios e contornos.
Dificilmente um texto sai “redondo” como aquele slogan da cerveja. À maioria das vezes foi reescrito dezenas de vezes, até o autor se dar por satisfeito. Escrevo à velocidade em que o automatismo da minha mão, tenta acompanhar a fluidez do pensamento, que tem me causado sérios apuros, os mesmos enfrentados pelo “bruxo do Cosme Velho”.
Na ânsia de acompanhar o impulso mental, escrevia com rapidez e, depois tinha dificuldade em decifrar a escrita. Infelizmente dele, herdei apenas o sobrenome e as gafes machadianas.
*José Machado é veterano jornalista e cronista amapaense

Desorganizador

DESORGANIZADOR
Rui Guilherme*

Para Amarante,
Com raiva, com amor e muita saudade.

 Por ordem médica, comprei um tal de Porta Med Super – organizador semanal de cápsulas, comprimidos e pílulas. O dispositivo contém 7 porta-cápsulas  destacáveis, com quatro compartimentos individuais cada (manhã, almoço, jantar e noite), um para cada dia da semana. Mais organizador impossível, inclusive ao dizer que serve para armazenar dia a dia “cápsulas, comprimidos e pílulas”; produtos que eu nem sabia que eram distintos um do outro, não sendo – como pensava na minha santa ignorância – senão meros sinônimos entre si.

Imagino como ficariam meu pai e o meu amigo/irmão Amarante  diante do Porta Med Super. Em nosso escritório de advocacia em Belém, na mesa de Papai era impossível enxergar-lhe o tampo: havia uma grande profusão de papéis, documentos, pedacinhos com anotações as mais diversas – um caos completo. E que ninguém se atrevesse a tentar arrumar: Papai jamais consentia, e a resposta que ele provavelmente daria diante de uma tentativa de invasão em sua profusão de papelório era a mesma que o Amarante um dia deu para a filha Tahys:- “Deixaaa isto aí que eu sou organizado na minha bagunça.”

Éramos quatro irmãos: Sérgio e eu; Amarante e Jorge. Os três primeiros, advogados; o último, médico. Do quarteto, sobrevivo eu, o derradeiro, o fona. Sérgio e Amarante estiveram juntos a maior parte de sua vida, desde a faculdade e no Departamento Jurídico do Banco da Amazônia em Belém, até nos anos que passaram em Macapá, trabalhando na Procuradoria Geral do Estado e morando na República Aristocrática de San Marino, meus vizinhos. Lá chegou a ir em visita Jorge, médico, violonista, seresteiro emérito, cuidador de indígenas, mais parecido comigo do que com o irmão dele, assim como Sérgio e Amarante pareciam ser mais irmãos um do outro do que éramos Sérgio e eu, filhos do mesmo casal.

Dizem que sou organizado, e quem assim me julga, faz-me justiça. O Jorge, não sei. Do quarteto, foi o primeiro a deixar este planeta. Organizado sou, sem ser fanático. Mas gosto de ter tudo em seu devido lugar, até para evitar o saco que é de ter que ficar procurando as coisas. Já estando quase que com meu prazo de validade vencido, para continuar podendo escrever minhas mal traçadas linhas, ouvir meus concertos, ver meu futebol, inteirar-me do noticiário, ler meus livros, curtindo minhas memórias, amando meus amores e me esforçando para perdoar a quem me tem ofendido, tenho que fazer minha ginástica três vezes por semana, observar uma dieta pobre em gorduras e açúcar e tomar diariamente a bateria de remédios que o médico me prescreve. É aqui que entra o organizador Porta Med Super, do qual o Amarante iria fazer gozação. Ele e Sérgio, contrariando a aprovação que eu receberia do médico Jorge. Afinal de contas, ele e eu parecíamos mais um com o outro que com os nossos irmãos mais velhos.

Jorge falava de sua derradeira mulher como sendo a nona geladeira, pois a cada casamento que se desfazia, uma geladeira ia embora.

Sérgio partiu sem tirar a farda verde oliva, apresentando-se como primeiro tenente Vasconcellos, da Arma de Infantaria. Fazia juramentos – que nem sempre cumpria – invocando a lâmina de sua espada de oficial. E por aí seguia, enquanto nos deliciávamos nas tardes de vinho e churrasco na casa deles no Condomínio San Marino, a qual Sérgio dizia que era a “Base do Exército”. Bem a propósito, e levando em conta outra mania do meu irmão mais velho de amar os Estados Unidos, Amarante dele falava que Sergio era militarado e amaericanalhado. Esse Amarante!…

Esse Amarante! Ele dizia, entre outras coisas, que iria ministrar um curso de “vitologia”, recomendando que Sérgio e eu nos matriculássemos, para que aprendêssemos a viver com ele. Não passou de projeto, rejeitado à unanimidade. Primeiro porque ninguém ensina ninguém a viver, depois porque viver como Amarante viveu… sei não… nem ele conseguiria ensinar, nem o melhor e mais esforçado aluno iria conseguir aprender.

Amarante partiu no raiar do dia, seis horas da manhã. Recebi mensagem de Tahys. Ela o adorava! Tentei consolar a filha desolada, mas caí num choro sem controle, e acabei sendo consolado por ela.

Ouvi com raiva a notícia da morte do amigo singular. Pouco antes dele partir, fruto quiçá de premonição que ocorre com os iluminados, Amarante ouvia a música “Epitáfio”, dos Titãs. A letra diz que “devia ter amado mais, arriscado mais, ter visto mais o sol nascer”. Daí minha raiva, talvez frustração, de não ter convivido mais com ele, com Jorge, com Sergio; de não termos fruído juntos mais nasceres do dia, ocasos, luares. De não termos brigado menos e trocado mais tanto amor que deixamos inconfessado. Por isso esta saudade tamanha, mitigada, mal-e-mal, pela esperança de que o quarteto volte a reunir-se, respeitando um a bagunça do outro, ou sua organização, ou seus infames trocadilhos, ou suas mais bizarras idiossincrasias.

*Rui Guilherme é poeta, escritor, autor de vários livros, juiz aposentado e atualmente mora no Rio de Janeiro

My friend Fernando Canto

My friend Fernando Canto
Ray Cunha

Conheci Fernando Canto por volta de 1969; tínhamos em torno de 15 anos e eu morava perto da casa do Fernando, no Morro do Sapo, Laguinho. Já frequentava, então, a casa do pai da minha geração perdida, Isnard Brandão Lima Filho, na Rua Mário Cruz, amava os Beatles e bebia como Ernest Hemingway.

Em dezembro de 1971, publiquei, com Joy Edson e José Montoril, um livrinho de poemas, XARDA MISTURADA, e no ano seguinte peguei o que pude de exemplares desse livro e me mandei de Macapá. Peguei um barco para Belém e, de lá, consegui carona em um caminhão via Belém-Brasília e de Brasília fui parar no Rio de Janeiro, onde convivi com o músico Aimorezinho Nunes Batista e seu irmão, Itabaracy, com o compositor Luiz Tadeu Magalhães, com o poeta e pintor Manoel Bispo e com o pintor Abenor Pena Amanajas, até 1974, quando peguei de novo a estrada.

De volta a Macapá, tentei retornar aos estudos, o quarto ano ginasial, mas eu continuava extremamente inquieto e a estrada me atraía irresistivelmente, e assim tomei outro barco e desta vez segui para Santarém e depois para Manaus, onde morava tia Izabel, irmã de meu pai, João Raimundo Cunha. Em Manaus, consegui emprego como repórter policial do Jornal do Commercio. Era o ano de 1975.

Vivi em Manaus até 1877. Trabalhei, depois do Jornal do Commercio, em A Notícia e A Crítica. Foram dois anos de farra, que me deram elementos para escrever o conto A GRANDE FARRA. Mesmo assim sentia-me entediado. As coisas estavam acontecendo mesmo em Belém, onde moravam o pintor Olivar Cunha, Isnard Lima e Fernando Canto, além de vários amigos de Macapá.

A estrada novamente me tragou. Peguei um avião e me mandei para Belém, onde consegui emprego como repórter em O Liberal. Eu continuava com apenas o quarto ano ginasial, o equivalente, hoje, ao último ano do ensino fundamental, mas as empresas jornalísticas ainda aceitavam jornalistas sem diploma.

Foi nessa época que estreitei minha amizade com Fernando Canto. Bebíamos e conversávamos muito. O Fernando tinha um tio que era dono de bar e quando aparecíamos lá, bebíamos de graça. Certa noite bebemos tanto gim no bar do tio do Fernando que no dia seguinte eu rescendia a gim.

Em 1980, retornei ao Rio e em 1982, a Belém. Submetera-me ao supletivo de primeiro e segundo graus e ao vestibular da Universidade Federal do Pará e passei no curso de Jornalismo. Graduei-me em 1987 e retornaria ao Rio, mas, em Brasília, Walmir Botelho, então diretor de redação do Correio do Brasil, me convidou para trabalhar com ele como redator da capa do jornal. Aceitei, casei-me com a gata Josiane Souza Moreira Cunha, nasceu minha princesinha Iasmim Moreira Cunha e até hoje moro em Brasília.

Aqui e ali vou a Macapá, onde tenho encontro marcado com Fernando Canto. A última vez que estive lá, de 11 a 16 de janeiro passado, foi uma grande farra. Estivemos juntos quase o tempo todo, vagabundando por toda a orla, até o Curiaú, e parando em restaurantes e bares da cidade. Encontrei com o Manoel Bispo e bati um longo papo ao telefone com a Alcinéa Maria Cavalcante, musa da minha geração e a grande dama da poesia macapaense.

A realidade é infinita como a própria vida. Cada qual tem a sua própria realidade, assim como cada circunstância e cada local e horário tem realidade específica, de modo que a realidade é um labirinto infinito em sucessão e variação. A sensação de que só há uma realidade é que só nos encontramos em um determinado ponto desse labirinto e em determinado momento, de modo que aquele ponto e aquele momento criam a ilusão de que só há aquela realidade.

De certa forma, isso se parece com a observação do filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), de que só é possível chegar ao entendimento ao superar as próprias circunstâncias, que estão, por sua vez, em permanente processo de mudança: “O homem é o homem e a sua circunstância”. Acho que, em suma, esta foi a conversa que tive com Fernando Canto, durante os quatro dias em que estive em Macapá, ora a bordo do carrão tipo James Bond do Fernando, ora em bares, ora ao telefone.

Fui à Macapá para ver minha irmã Linda, que está bem. Fernando Canto e eu batemos muito papo durante esses poucos dias. Senti-me personagem de ficção, o Mundico dos TEMPOS INSANOS, conto publicado inicialmente no livro O Bálsamo e Outros Contos Insanos, pela Editora da Universidade Federal do Pará, em 1995. Na companhia do Fernando sinto a velha sensação de aventura, de novas possibilidades, de coisa nova.

Acho que vale a pena transcrever o conto OS TEMPOS INSANOS, comentado. Trata-se do melhor texto, o mais criativo, de um escritor que vem, a cada dia, se assenhoreando mais e mais do labirinto da vida, que já compreendeu que a verdadeira vida se passa em um plano mais sutil do que o da matéria, pois ele, como eu, já aprendeu a voar na luz.

Chuva-Matina

CHUVA-MATINA
Alcy Araújo (1924-1989)

De repente o azul do céu ficou cinzento e o sol que bailava em luz na manhã tomou a inesperada resolução de se esconder por trás do silêncio que se fez.
Um relâmpago fotografou o momento de espanto e um trovão rasurou a manhã que ficou pesada como chumbo. Então a chuva começou a cair sobre a cidade, comprimindo os pássaros contra as árvores molhadas e as crianças nas vidraças das janelas.
Depois a chuva começou a entrar no meu quarto, gotejar no meu poema, molhar o meu relógio cansado de marcar as horas lúcidas do meu imenso amor, refletido em lágrimas no espelho defronte e insone.
Poderia contar aos que ouvem meu poema nascendo, que muitas dores embarcaram inutilmente nos barquinhos de papel para naufragarem sem remissão logo adiante, na primeira curva do rio que a chuva inaugurou diante de minha janela. Mas não conto porque todas as tristezas voltaram a habitar o meu dia e a minha noite e o meu poema.
Estou visivelmente crucificado à minha dor. Mesmo porque não tenho uma rosa vermelha para mandar à Bem-Amada que chora a minha ausência e a infelicidade de haver me amado numa noite em que a música vinha do interior dos saxofones e nos tornou comovidos e solitários. Lembro que não conhecemos ninguém fora de nós mesmos, quando promovíamos a gestação da saudade.
Sei agora que ando de pés nus, pisando lágrimas cristalizadas que ferem como cactos. Mas longe, onde a esperança se esconde, a felicidade prometida sorri nos olhos daquela que tem as mãos cheias de afeto.
E a chuva continua lavando desencantos…
Não tenho, porém, nenhuma rosa e nenhum pássaro pousado nos meus ombros nesta manhã cinzenta. Quem estiver ouvindo o meu poema nascendo sabe que é assim e que me falta um gesto de amor que ficou na saudade e que pode voltar a qualquer momento, para minha eternidade absoluta. Digo isto porque o céu está ficando azul novamente, neste instante em que enxugo uma lágrima no lenço que guarda a lembrança das lágrimas que a Bem-Amada chorou, numa desesperada hora de amor.

80 anos de Luzair Costa – Emoção e saudade na linda crônica do juiz Heraldo Costa

80 anos de Luzair Costa
Heraldo Costa – juiz de Direito

Hoje, dia 11 de janeiro de 2022, se viva fosse, minha mãe faria 80 anos. Seria um dia de muitas emoções e alegrias.
Os manos estariam correndo para concluir suas atividades para, de noite, cantarmos parabéns para nossa rainha.
Não que durante o dia os filhos já não tivessem passado pela casa dela no café da manhã, almoço e café da tarde, alguns adiantando os abraços, beijos e presentes, ante a impossibilidade de alguns não poderem comparecer à noite.
O evento era simples, como de fato era a aniversariante. Não precisava de comidas e presentes caros para vê-la radiante num dos seus vestidos guardados especialmente para aquela ocasião.
Lembro de uma vez que fomos a um restaurante. Ela ficou muito feliz mas notei uma ponta de preocupação. Perguntei se não havia gostado e ela disse que tudo estava lindo, mas estava preocupada em dar uma despesa tão grande para tanta comida.
Mas na verdade, minha mãe, você nunca deu despesa, pois durante toda sua vida você só deu amor, cuidado e atenção.
Sua vida foi repleta de preocupações com os outros, que toda a nossa preocupação com você, não chegou nem perto da sua.
Mas a festa sempre era bonita pra ela. A casa ficava cheia. Familiares e amigos, conhecidos e desconhecidos. Gente simples e importante, sempre dava o ar da graça em seus aniversários.
E depois de tantos elogios, sabíamos que a fala da aniversariante seria de poucas palavras, mas regadas de muitas lágrimas de gratidão. Sempre após agradecer a Deus e a todos, falava que não merecia tudo aquilo que estavam fazendo.
Merecia sim, minha mãe. Se uma pessoa nesta terra mereceu todos os afagos, elogios e homenagens, essa pessoa foi você.
Há uma expressão bíblica no capítulo onze do livro bíblico de Hebreus que diz que as obras boas de Abel, mesmo depois de morto, ainda falam.
As suas obras, minha querida mãe, mesmo depois da sua morte continuam falando por você, pois, quanto mais nos distanciamos no tempo da partida da pessoa amada, podemos esquecer de sua fisionomia e de sua voz, mas nunca esquecemos do seu caráter.
Siga em paz minha mãe, no seu caminho espiritual.
Feliz aniversário e obrigado pelo tempo que nos deu o privilégio de palmilhar com você neste plano terrestre.

Quando chego a Macapá sinto um terremoto

Quando chego a Macapá sinto um terremoto
Por Ray Cunha

Meu caso com Macapá/AP é antigo, remonta a 7 de agosto de 1954, data do meu nascimento. Sete mais oito, quinze, noves fora, seis, mais um, sete, mais cinco, doze, noves fora, três, mais quatro, sete. Sete é meu número, que na numerologia representa a perfeição, ou a perfeita integração entre os planos físico e espiritual.

A propósito, meu nome, Raimundo, é do gótico, o alemão antigo, “protetor, sábio e poderoso”. Em 1971, Isnard Brandão Lima Filho, pai da minha geração perdida, de poetas cachaceiros, sugeriu que eu me tornasse Ray Cunha, pois se fosse vertido para o inglês seria mais palatável para o ambicionado mercado de leitores anglófilos. O poeta tinha razão.

Sou um autêntico sete, já que gosto de ambientes bem arrumados, tanto que, de manhã, deixo minha cama impecável; aliás, arrumo até cama de hotel. Fujo de barulho, isolando-me para ouvir Mozart e Frank Sinatra. E sou absolutamente artista; não saberia viver sem ser artista, sem criar. Eu crio personagens e converso com elas.

Se há uma coisa que me faz sofrer é injustiça, especialmente quando não posso corrigi-la. Porque somos introspectivos e às vezes nos isolamos podemos ser vistos como tímidos ou arrogante, o que me faz sofrer também.

Estamos nos dias da semana, nas fases da Lua, no ciclo menstrual feminino, nas cores do arco-íris e nas notas musicais. Outra coisa comum entre os sete é que somos como os gatos: vivemos com um pé na Terra e outro no plano astral.

O sete é o número da reflexão, da sabedoria, do conhecimento, da busca pela compreensão da vida. Mas somos, os do clube dos sete, inflexíveis muitas vezes, irritadiços, silenciosos, arrogantes, contudo, ao fim e ao cabo, místicos. Sinto-me, quase sempre, como o apanhador no campo de centeio. Observo as crianças brincando e se a bola cai muito distante vou apanhá-la e a devolvo às crianças. Zelo para que nada lhes aconteça.

Sei também que nós, sete, temos a capacidade de influenciar as pessoas, pois nossa intuição é aguçada e assim entendemos com facilidade os sentimentos alheios. Procuramos levar felicidade às pessoas, pois os sete não sentem vazio existencial; há sempre luz nos guiando.

E é assim, como um sete, que eu amo Macapá, onde vivi meus primeiros 17 anos, de 1954 a 1971. Aprendi a ler aos cinco anos, e então meu universo entrou em um big-bang igual ao do próprio Universo denso. Aos 14 anos, escrevia versos para a Alcinéa, batia papo com Isnard Brandão Lima Filho, embebedava-me com Joy Edson e conversava sobre pintura com os visitantes da exposição do Olivar Cunha.

Meu mundo era Macapá, até o dia em que fui a Belém, a capital da Amazônia na época em que os colonos portugueses dividiram o Brasil em dois: a Amazônia e o Brasil mesmo, o Sudeste. Em Belém, comecei a descobrir que havia outra cidade além de Macapá. Foi o começo da traição.

Confesso que, desde então, traio Macapá, mas isso se passa apenas na minha cabeça, porque as cidades são como as mulheres; pensamos que podemos ser donos delas, o que é impossível. As cidades, como as mulheres, são poesia no veio. Poemas são apenas pedras preciosas, gotas do azul, que garimpamos no veio da poesia. As mulheres são como esses veios, como minas, como labirintos de luz. E ninguém pode ser dono da luz.

E como as mulheres, as cidades são sempre agora. A cada encontro meu com Macapá, sinto, ao pisar no seu solo, um terremoto de sensações, como foi a sensação do primeiro beijo, da primeira mulher que me guiou na sua própria eternidade, como rosas vermelhas, colombianas, nuas, ao sol.

Na verdade, nunca traí Macapá, porque ela não está nem aí para mim; eu é que a amo, eu é que carrego na memória da minha alma seu cheiro de jasmineiros chorando nas madrugadas ardentes, seus sons do Caribe e dos Beatles, a voz da Linda, bate-papo com Fernando Canto, cheiro de mar.

Não sei como será desta vez, pois quando passamos tempo demais sem ver uma mulher ela nos esquece. Mesmo assim aqui estou eu, pois a mim não importa o esquecimento; tudo o que importa é o terremoto das emoções, eterno. De modo que basta eu chegar para que a intensidade seja quase insuportável.

Antônio Brasileiro, o homem misterioso que tocava músicas numa folha de mangueira

Uns diziam que ele era louco, outros falavam que era um bêbado. Penso que nem uma coisa nem outra, talvez misterioso, diferente de todos os outros homens que andavam  pelas ruas do antigo bairro da Favela. Ah, ele tinha sim mistérios guardados no olhar.
Sempre trajado elegantemente – calça social, sapato bico fino e camisa de mangas – diariamente ele percorria as ruas do bairro tocando maravilhosamente várias músicas, principalmente o hino nacional, numa folha de mangueira, por isso ficou conhecido como “seu Antônio Brasileiro”. Nunca vi ninguém, além dele, usar uma folha de qualquer planta como instrumento musical.
Louco não era, pois um louco jamais conseguiria essa proeza. Bêbado também não, pois caminhava sobre o meio-fio que, se muito, tinha um palmo de largura. Um bêbado não teria equilíbrio para tal.
Educado, mas de poucas palavras, cumprimentava todo mundo com um discreto bom dia, um aceno de mão ou inclinando a cabeça. Não falava de sua vida nem da vida de ninguém. Se alguém começava a lhe fazer perguntas tratava logo de pegar uma folha de mangueira e começar a tocar, assim fugia do interrogatório.
Quando ele aparecia tocando sua folha, as crianças corriam atrás dele e seguiam-no por alguns quarteirões. Ao ouvir o som, os adultos corriam para as janelas. Muita gente dizia que não havia ninguém que tocasse com mais perfeição que ele o Hino Nacional, em qualquer  instrumento que fosse.
Antônio Brasileiro nunca contou quando e como ou com quem descobriu que podia tirar os mais belos sons e tocar lindas melodias, soprando uma folha de árvore.
Seu endereço exato ninguém sabia. O certo é que morava na Favela (aqui abro um parêntese para dizer que o bairro da Favela nunca foi uma favela), talvez perto do estádio Glicério Marques, pois era por ali, na rua Leopoldo Machado que se ouvia, pela manhã, os primeiros sons de sua folha, depois descia a avenida Mendonça Furtado e seguia não sei para onde. Horas depois voltava pelo mesmo caminho.
Tinha família? Tinha sobrenome? Ninguém sabia. E se alguém lhe perguntasse não respondia, se punha a tocar. Como já falei, era homem de poucas palavras. Misterioso. E todos queriam desvendar, sem sucesso, os mistérios daquele tocador de folhas, que tinha o olhar sereno e quase nunca sorria.
Tinha profissão? Dizem que foi um cozinheiro de mão cheia do Hospital Geral e que do nada abandonou o emprego e passou a perambular pelas ruas. Por isso que uns dizem que ele era louco e outros que ele perdeu o emprego para o álcool. Mas eu reafirmo: nem louco, nem bêbado. Era o retrato da liberdade, livre de todas as amarras, talvez preso apenas aos seus mistérios que ninguém conseguia decifrar.
Às vezes quando caminho pelos canteiros floridos da avenida Mendonça Furtado ou à sombra das mangueiras da Leopoldo Machado imagino “seu Antônio Brasileiro” aparecendo de repente. Ele arranca uma folha de mangueira, começa a tocar, as pessoas aparecem na janela. Ele passa por mim, me cumprimenta com a cabeça, desce a ladeira e segue rodeado por um bando de moleques não sei para onde.
E eu sorrio. E quem me vê sorrindo assim sozinha nem imagina o por quê.
Antônio Brasileiro deixou seus mistérios impregnados na paisagem da minha Favela.