Um poema de Cora Coralina

Ofertas de Aninha (Aos Moços)
Cora Coralina (1889-1985)

Eu sou aquela mulher
a quem o tempo
muito ensinou.
Ensinou a amar a vida.
Não desistir da luta.
Recomeçar na derrota.
Renunciar a palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos.
Ser otimista.

Creio numa força imanente
que vai ligando a família humana
numa corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana.
Creio na superação dos erros
e angústias do presente.

Acredito nos moços.
Exalto sua confiança,
generosidade e idealismo.
Creio nos milagres da ciência
e na descoberta de uma profilaxia
futura dos erros e violências do presente.

Aprendi que mais vale lutar
do que recolher dinheiro fácil.
Antes acreditar do que duvidar.

Chá da tarde – Um poema de J.G. De Araújo Jorge

LIBERDADE
J.G. De Araújo Jorge
(20/05/1914 — 27/01/1987)

A liberdade é o meu clarim de guerra
e eu sou, no meu viver amplo e sem véus,
como os caminhos soltos pela terra,
como os pássaros livres pelos céus.

Ela é o sol dos caminhos ! Ela é o ar
que os enche os pulmões, é o movimento,
traz num corpo irrequieto como o mar
uma alma errante e boêmia como o vento.

Minha crença, meu Deus, minha bandeira,
razão mesma de ser do meu destino,
há de ser a palavra derradeira
que há de aflorar-me aos lábios como um hino.

Liberdade: Alavanca de montanhas!
Aureolada de louros ou de espinhos
há de cingir-me a fronte nas campanhas,
há de ferir-me os pés pelos caminhos.

Sinto-a viva em meu sangue palpitando
seja utopia ou seja ideal, – que importa?
Quero viver por esse ideal lutando,
quero morrer se essa utopia é morta !

Os reis magos – Olavo Bilac

Os reis magos

Olavo Bilac

Diz a Sagrada Escritura
Que, quando Jesus nasceu,
No céu, fulgurante e pura,
Uma estrela apareceu.
Estrela nova … Brilhava
Mais do que as outras; porém
Caminhava, caminhava
Para os lados de Belém.
Avistando-a, os três Reis Magos
Disseram: “Nasceu Jesus!”
Olharam-na com afagos,
Seguiram a sua luz.
E foram andando, andando,
Dia e noite a caminhar;
Viam a estrela brilhando,
sempre o caminho a indicar.
Ora, dos três caminhantes,
Dois eram brancos: o sol
Não lhes tisnara os semblantes
Tão claros como o arrebol
Era o terceiro somente
Escuro de fazer dó …
Os outros iam na frente;
Ele ia afastado e só.
Nascera assim negro, e tinha
A cor da noite na tez :
Por isso tão triste vinha …
Era o mais feio dos três !
Andaram. E, um belo dia,
Da jornada o fim chegou;
E, sobre uma estrebaria,
A estrela errante parou.
E os Magos viram que, ao fundo
Do presépio, vendo-os vir,
O Salvador deste mundo
Estava, lindo, a sorrir
Ajoelharam-se, rezaram
Humildes, postos no chão;
E ao Deus-Menino beijaram
A alva e pequenina mão.
E Jesus os contemplava
A todos com o mesmo amor,
Porque, olhando-os, não olhava
A diferença da cor …

Chá da tarde

Tão-somente as reticências
Acyr Castro

Há que evitar a lentidão do meio da semana.
Fugir da nostalgia. Esquecer dores e ais.
Não pensar na tristeza nem na estrela lá no alto.
Ler nos jornais apenas a boa nova,
o obsoleto, o que não fere mais.
Nada de exumar melancolias ou saudades;
ficar ao léu, afastado vento.

Permitir da vida só as reticências.
E matizar o vácuo, distante do lembrar.
Fazer do pensar tão-só uma sonata,
sem remorsos.
A solidão uma jornada a olvidar
e, passageira, a escrever.

Um poema de Drummond

Ausência
Carlos Drummond de Andrade

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Amar e ser amado

Amar e ser amado
Castro Alves

Amar e ser amado! Com que anelo
Com quanto ardor este adorado sonho
Acalentei em meu delírio ardente
Por essas doces noites de desvelo!
Ser amado por ti, o teu alento
A bafejar-me a abrasadora frente!
Em teus olhos mirar meu pensamento,
Sentir em mim tu’alma, ter só vida
P’ra tão puro e celeste sentimento:
Ver nossas vidas quais dois mansos rios,
Juntos, juntos perderem-se no oceano —,
Beijar teus dedos em delírio insano
Nossas almas unidas, nosso alento,
Confundido também, amante — amado —
Como um anjo feliz… que pensamento!

Chá da tarde – Se tu viesses ver-me

Se tu viesses ver-me
Florbela Espanca

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesse toda nos teus braços…
Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca… o eco dos teus passos…
O teu riso de fonte… os teus abraços…
Os teus beijos… a tua mão na minha…
Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri
E é como um cravo ao sol a minha boca…
Quando os olhos se me cerram de desejo…
E os meus braços se estendem para ti…

Chá da tarde – Uma lembrança de Verão

Uma lembrança de Verão
Val-André Mutran

Se um dia pudesse voltar no tempo…
Ouviria que seja por encanto o sussurrar do vento.
Leria muito mais Pablo e Spinoza à fórmulas de Kent.

Se um dia me fosse permitido olhar o tempo…
Repararia o corpo perfeito dos bem acabados ateus
que não reparam santos, pois, movem-se como Deuses.

Se um dia me fosse concedido ouvir o tempo…
Calaria, circunspecto, ouvir Callas após o Ato final.

Assobiaria besteiras para espantar a sina.

Se alguma vez conhecesse o encanto…
Confraria um trato: o de adiar a fome, aviltar a vontade,
esquecer a dor, levitar no agora;
encantar-me com a noite: perder-me de amor pelo dia.
Se apesar de tudo e só peço haja não me for permitido…

Que a morte venha tântrica, semântica, pois é tempo de trabalho
Muitos me esperam
Poucos me verão…
…No Inverno.

(Val-André Mutran, poeta e jornalista paraense, há vários anos residindo em Brasília)

Chá da tarde – O pão de cada dia

O pão de cada dia
Thiago de Mello

Que o pão encontre na boca
o abraço de uma canção construída no trabalho
Não a fome fatigada
de um suor que corre em vão.

Que o pão do dia não chegue
sabendo a travo de luta
e a troféu de humilhação.
Que seja a bênção da flor
festivamente colhida
por quem deu ajuda ao chão.

Mais do que flor, seja fruto
que maduro se oferece
sempre ao alcance da mão.
Da minha e da tua mão.