Bom dia com poesia

Poética
Francisco Dantas

Meu bem-querer,
não te assustes.
Eu sou teu anjo:
sem asas
sem auréola
sem curriculum vitae
e sem santidades.

Sou humano e mortal,
determinado, porém,
a velar por ti
com toda a força
dos sentimentos
dos meus versos.

Um poema de Paulo Fonteles Filho

Pequeno Poema para Minha Mãe
Paulinho Fonteles

A noite cai no Araguaia e penso em ti, minha mãe.
Minhas botas estão sujas pelos dias com meus companheiros,
mas meu coração está limpo
e sereno
e minhas lembranças estão em combate.
Escrevo-te como filho parido no cárcere e em Xambioá,
pequena mãe,
ainda escutamos os sussurros da vida futura.
Bem quisera beijar-te o rosto luminoso,
e dizer-te, como quem entoa rouxinóis,
que vencemos os matadores de crianças,
os pusilânimes da tortura e da morte anunciada,
os algozes das masmorras do Planalto,
os pústulas do obscurantismo e da infelicidade geral de nosso povo.
E vencemos, querida mãe,
o ministro do Garrastazu, que como lobo rodeava-me,
com sangue nas mãos e as presas afiadas
e este dizia:”Filho desta raça não deve nascer”.
Mas nascemos, filhos do povo, às centenas
aos milhares
aos milhões.
E como vão meus irmãos?
E Ronaldo periquito, gerado na prisão
e o roqueiro guerrilheiro João?
A noite cai e penso em ti, minha mãe.
Minhas botas estão sujas pelos dias com meus companheiros,
mas meu coração está limpo e sereno
e nutro grandes esperanças.
Sou todo combate.
(6 de Agosto de 2009)

Bom dia com poesia

Definição
Paulo Mendes Campos

O tempo não é a fonte
jorrando dois jatos d’água
de uma carranca bifronte.

Não é pesado nem leve
Não é alto nem rasteiro
Não é longo nem é breve.

Nem tampouco o passadiço
suspenso entre dois vazios
como frágil compromisso.

O tempo é meu alimento
Meu vestido, meu espaço
Meu olhar, meu pensamento.

Bom dia com poesia

O AUTO-RETRATO
Mario Quintana (1906-1994)

No retrato que me faço
– traço a traço –
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore…
às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança…
as coisas que não existem
mas um dia existirão…
e, desta lida, em que busco
– pouco a pouco –
minha eterna semelhança,
no final que restará?
Um desenho de criança…
Corrigido por um louco!

(Do livro “Apontamentos de História Sobrenatural”, lançado em 1976)

Eu não vou perturbar a paz

EU NÃO VOU PERTURBAR A PAZ
Manoel de Barros (1916-2014)

De tarde um homem tem esperanças.
Está sozinho, possui um banco.
De tarde um homem sorri.
Se eu me sentasse a seu lado
saberia de seus mistérios
ouviria até sua respiração leve.
Se eu me sentasse a seu lado
descobriria o sinistro
ou doce alento da vida
que move suas pernas e braços.

Mas, ah! eu não vou perturbar
a paz que ele depôs
na praça, quieto.

As Fadas – Antero de Quental

As Fadas
Antero de Quental

As fadas… eu creio nelas!
Umas são moças e belas,
Outras, velhas de pasmar…
Umas vivem nos rochedos,
Outras, pelos arvoredos,
Outras, à beira do mar…

Algumas em fonte fria
Escondem-se enquanto é dia,
Saem só ao escurecer…
Outras, debaixo da terra,
Nas grutas verdes da serra,
É que se vão esconder…

Cantiga – Manuel Bandeira

Cantiga
Manuel Bandeira

Nas ondas da praia
Nas ondas do mar
Quero ser feliz
Quero me afogar.

Nas ondas da praia
Quem vem me beijar?
Quero a estrela-d’alva
Rainha do mar.

Quero ser feliz
Nas ondas do mar
Quero esquecer tudo
Quero descansar.

Não há Vagas – Ferreira Gullar

Não há Vagas
Ferreira Gullar

O preço do feijão
não cabe no poema.
O preço do arroz
não cabe no poema.
Não cabem
no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila
seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
— porque o poema,
senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira.

Saudação à chuva

Saudação à chuva
César Bernardo de Souza

Gotas de chuva são lágrimas das nuvens.
O azul do céu é espelho do mar –
Imenso espaço prismático de Deus –
Cúmplice eterno do cálido olhar do sol.

As nuvens choram do alto:
chuvisca aqui, chove acolá!
Então chuva e vento fazem o mar.

Um vento que vem de qualquer lugar,
Balança o rio, assobia e sacode imensidões.
E vem pra cá, depois da praia.
Faz poeira, desalinha o firmamento,
Bravo faz redemoinho,
suave se desmancha,
alegre canta e rodopia.
Então, viva a chuva!

O rio e o mar são ânforas desse pranto.
Que despenca das nuvens,
que escorre no vento,
Deita-se com a terra
e a emprenha de tempo.
E em seu útero se esconde do sol…
e ainda é chuva!
semente da flor.