Um poema de Álvaro da Cunha

Mãe Luzia
Álvaro da Cunha

Velha, enrugada, cabelos d’algodão,
fim de existência atribulada, cuja
apoteose é um rol de roupa suja
e a aspereza das barras de sabão.

Mãe Luzia! Mãe Preta! Um coração
que através dos milagres de ternura
da mais rudimentar puericultura
foi o primeiro doutor da região.

Quantas vezes, à luz da lamparina,
na pobreza do catre ou da esteira,
os braços rebentando de canseira
Mãe Luzia era toda a medicina.

Na quietude humílima do rosto
sulcado de veredas tortuosas,
há um clamor profundo de desgosto
e o silêncio das vidas dolorosas.

Oh, brônzea estátua da maternidade:
ao te encontrar curvada e seminua,
vejo o folclore antigo da cidade
na paisagem ancestral da minha rua.

(Do livro Amapacanto)

De Élson Martins sobre Álvaro da Cunha

De um   artigo   do jornalista Élson Martins publicado em março de 2005 na Folha do Amapá, pincei este trecho:

“O único camarada que teve coragem de peitar a Icomi foi o poeta Álvaro da Cunha, que escreveu o livro Quem explorou quem no contrato de manganês do Amapá, em 1962.  Mas ele sofreu ameaças de toda ordem!  O livro lançado pela Editora Rumo (que tinha endereço à Avenida Mendonça Furtado, 8, em Macapá) permanece proibido até os dias de hoje.  Naquele ano, Álvaro da Cunha, que era também técnico em Administração e respondia pela direção da Companhia de Eletricidade do Amapá, viajou do Rio de Janeiro até Macapá com um energúmeno da Icomi que lhe fez todo tipo de proposta para segurar o livro-denúncia.  Terminou por ameaçar (veladamente) o autor de morte.”

 

Carta de Álvaro da Cunha ao Alcy Araújo

Revirando o baú de lembranças, encontramos esta carta que o Álvaro da Cunha escreveu para o Alcy Araújo em 1984:  

RJ, 27.10.84

Alcy

Eu te conheço há quase meio século. De quando te achei, te assumi e te preservo. Os anos somam mais de quatro décadas. Nenhum outro amigo data de tão longe. Nem meu casamento é tão antigo. O mais velho de meus filhos é bem mais novo que o musgo da estima que eu te tenho.

 Juntos assitimos à revoluções prodigiosas. Somos contemporâneos e clientes de acontecimentos e mistérios que transformaram o mundo. Diante de nós houve uma grande guerra, os homens foram à lua, dominaram a tecnologia nuclear e satelizaram o espaço.

 De modo que tudo que te diz respeito, comigo tem a ver. Ma chateia o fato que te enerva. Aquilo que te ofende me atinge. E quem tua boca beija, a minha adoça.

Por isso mesmo sei que me entendes, inclusive desculpando meu silêncio de meses., até porque pessoas como nós se comunicam mesmo sem palavras.

 Dito isto, Alcy, vamos a um pouco de trabalho, pela ordem:

1 – Teu próximo livro – Aos  poemas que enviaste para montagem do JARDIM CLONAL, tomei a liberdade de juntar mais 13 – todos estes poemas antigos, e que não incluístes, não sei por quê, na tua AUTOGEOGRAFIA  nem nos POEMAS DO HOMEM DO CAIS. Copiei-os das várias pastas onde guardo teus poemas e tua correspondência desde o tempo que vivias em Belém do Pará. Perpetrei pequenas revisões. Fica a teu critério aprová-las ou não. Pois os poemas são teus, não meus, infelizmente.

2 – Tua carta bêbada – Que foi como chamaste a gravação em fita que veio regravar em mim o som da tua amizade e me envolver com tua palavra talentosa e boa. Escutei-a várias vezes com a Ester, a Cere, a Hiléia e os rapazes. E ainda a ouvi com o Armando e a Nilza, que ficaram comovidos principalmente com o trecho onde falas da tua conversa com o Luis Monteiro, a respeito da doença do Armando e do falecimento do Alberto.

Obrigado Alcy

3 – Os discos dos compositores e cantores- Como sabes, esse não é bem o meu setor. Não do ramo em crítica musical. Aliás, não sei compor, não sei dançar, nem tocar, nem cantar.

4 – O livro de Obdias Araújo – É sem dúvida surpreendemente melhor, muito melhor do que outros poetas novos que estão sendo lançados no Rio de Janeiro. parece que o Obdias já sabe que a poesia deve ser humana, revolucionária e formalmente boa. Vou ler mais uma vez e depois te escreverei a respeito.

Também depois darei minha opinião sobre o caso alienação de bens da ICOMI.

Então é só. Fala bem de mim à Maridalva e a essas tuas filhas maravilhosas e recebe um demorado e afetuoso abraço do

Álvaro da Cunha”

Um poema de Álvaro da Cunha

ANÚNCIO
Álvaro da Cunha

Eu estou sonhando com um regaço de virgem,
onde eu ponha a cabeça
e adormeça
quando este mundo se despedaçar.
Será que este quebranto no meu corpo
não é cansaço,
mas um pretexto para repousar?

– A vida é triste, o mundo é triste,
o amor é triste.
Quem me censura o ato de sonhar?

(Ainda posso encontrar o meu desejo
sem arredar um pé deste lugar)

E vou escrever anúncios no jornal:

“Poeta, em Macapá,
está precisando de um regaço de virgem
onde ponha a cabeça
e adormeça
quando este mundo se despedaçar”.
(Extraído da Antologia Modernos Poetas do Amapá – Macapá-AP, 1960)

Macapá Verão com poesia

Com uma programação voltada para as crianças, para despertar nelas o gosto pela poesia, o Movimento Poesia na Boca da Noite participou neste domingo do Macapá Verão no balneário do Araxá.
Com uma tarde linda, de céu azulzinho e colorido por papagaios, o Movimento espalhou pergaminhos com poesias de autores amapaenses, estendeu o Pano da Poesia na grama, distribuiu 134 origamis com trechos de poemas, declamou com as crianças e brincou de ciranda.
O objetivo foi atingido. As crianças ficaram encantadas com a poesia, declamaram, pediram livros e muitas disseram que querem ser poetas.

SNo Pano da Poesia as crianças ouviam atentamente – e encantadas – os declamadores do Movimento

boca13Felizes com os origamis com trechos de poemas de autores amapaenses e nacionais

boca12Sem timidez fizeram questão de recitar as poesias que ganharam

SA programação foi encerrada com ciranda resgatando as cantigas de roda

S

Hoje tem Poesia na Boca da Noite

Hoje, quinta-feira, na boca da noite poetas e amantes da poesia se encontram na ilharga do rio Amazonas no entorno da Fortaleza de São José (espaço defronte do Banco do Brasil) para falar, ler e declamar poesia.
É o Movimento Poesia na Boca da Noite que todas as sextas reúne em praças, calçadas, escolas mas que neste mês de férias escolares trocou a sexta-feira pela quinta-feira.
O Pano da Poesia será estendido às 17h. O encontro encerra com ciranda às 19h.
Para participar, basta gostar de poesia. Você, leitor do blog, é convidado especial. Vá lá e viva momentos inesquecíveis de ternura, lirismo e muita alegria.

S

Poetas do Amapá participam da Off Flip

O grupo poético Abeporá das Palavras participa da Off Flip que começou ontem em Paraty (RJ).
Liderado pela professora e poetisa Carla Nobre, o grupo apresenta  o recital poético A poesia nas águas dos rios,  quinta-feira, às 22h  Rua do Fogo, 4 – Centro Histórico (ao lado da Igreja de Santa Rita).
No sábado Carla Nobre participa de um debate sobre Caravana de Escritores com Marilia Arnaud (PB) e Sérgio Bernardo (RJ), com mediação de Ovídio Poli Junior, escritor e coordenador do núcleo de Literatura da Off Flip.


A Off Flip  é  um evento paralelo, alternativo e independente em relação à  famosa Festa Literária Internacional de Paraty – A FLIP, que será aberta hoje, às 19h, com  a conferência Graciliano Ramos: aspereza do mundo e concisão da linguagem”, seguida de show de Gilberto Gil.

Programação da FLIP – clique aqui

Programação da Off Flip – clique aqui

Bom dia!

Participação
Alcy Araújo Cavalcante

Estou convosco.
Participo dos vossos anseios coletivos.
Vim unir meu grito de protesto
ao suor dos que suaram
nos campos e nas fábricas.

Aqui estou
para juntar minha boca
às vossas bocas no clamor pelo pão
sancionar com este rumor que vai crescendo
a petição de liberdade.

Estou convosco.
Para unir meu sangue ao sangue
dos que tombaram
na luta contra a fome e a injustiça
foram vilipendiados em sua glória
de mártires
de heróis.

Vim de longe
percorrendo desesperos.
Das docas agitadas de Hamburgo
das plantações de banana da Guatemala
dos seringais quentes do Haiti.
Vim do cais angustiado de Belém
dos poços de petróleo do Kuwait
das minas de salitre do Chile
Passei fome nos arrozais da China
nos canaviais de Cuba
entre as vacas sagradas da Índia
ouvindo música de jazz no Harlem.
Afundei nas geladas estepes russas.
morri ontem no Canal da Mancha
e hoje no de Suez.
Tombei nas margens do Reno
e nas areias do Saara
lutando pela vossa liberdade
pelo vosso direito de dizer
e de amar.

Estou convosco.
Voluntariamente aumento o efetivo
dos que não se conformam
em viver de joelhos
morrendo sufocando lágrimas
nas frentes de batalha
nas prisões
para dar à criança recém-parida
o riso negado aos vossos pais
o pão que falta em vossas mesas.

Meu filho
e o filho do meu filho
saberão que o meu poema não se omitiu
quando vossas vozes fenderam o silêncio
e ecoaram  nos ouvidos de Deus.

(Do livro Poemas do Homem do Cais, do poeta Alcy Araújo Cavalcante, meu pai, lançado no Rio de Janeiro em 1983)