Artigo dominical

Fraternidade e Juventude
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

No capítulo terceiro da Regra de São Bento podemos ler esta norma: “Todas as vezes que devem ser feitas coisas importantes no mosteiro, convoque o Abade toda a comunidade e diga ele próprio de que se trata. Ouvindo o conselho dos irmãos, considere consigo mesmo e faça o que julgar mais útil. Dissemos que todos fossem chamados a conselho porque muitas vezes o senhor revela ao mais jovem o que é melhor”.

Este grande santo, vivido entre o quinto e o sexto século, fundador de uma ordem monástica que existe, ainda hoje, já tinha entendido que os jovens podiam colaborar de maneira eficaz na própria organização dos mosteiros. Podemos pensar também que se São Bento teve que colocar esta norma na sua Regra foi, talvez, porque, raramente, os jovens eram ouvidos nas questões “importantes” da fraternidade. Talvez seja esta uma questão que, apesar de ter passado tantos anos, de fato se apresente a cada geração. Sempre ouvimos falar de “conflito” generacional, de uma confrontação entre o que os mais adultos afirmam ser o certo e o novo que os jovens acreditam ter condições e capacidades de fazer.

Podemos ler também deste ponto de vista a história do mundo. De geração em geração, de conflito em conflito, as coisas vão caminhando. O que parecia imutável no passado, os jovens transformam ou vivem de maneira diferente e criativa. Nenhuma mudança é fácil. Nenhuma passagem acontece sem sofrimentos e saudades. No entanto devemos reconhecer que é na continuidade da busca que se abrem novos caminhos, que se alcançam novas metas, as quais, por sua vez, abrem a outros horizontes. Assim vai a história da humanidade, ela nunca vai ser uma mera repetição do passado, nunca se cansa de nos surpreender. Com um ritmo cada vez mais acelerado cada geração jovem freme por querer dizer e fazer algo de novo. Os saudosistas ficam para trás e o novo irrompe na vida com a força e a garra da juventude. Quantas ideias, quantas descobertas científicas, quantas intuições brotaram nos primeiros anos da vida das pessoas, junto com os sonhos e os projetos de quem sabe que tem a vida toda à sua frente. Nem tudo o que foi imaginado poderá tornar-se realidade, mas, sem dúvida alguma, alimenta a esperança, dá força para superar obstáculos, leva a tomar decisões novas e corajosas.

Assim deveriam ser os jovens, todos os jovens. Lamentamos que alguns busquem a felicidade trilhando caminhos errados que levam à tristeza, à solidão, à morte. Outros, por se sentirem mal amados, pensam em afirmar-se com a violência. Nada entristece mais que a visão de jovens desperdiçando as suas melhores capacidades e energias, sem rumo algum, tendo perdido qualquer sentido da vida.

Vivemos numa sociedade onde o mito da juventude eterna tomou conta dos mais adultos. Quantos sacrifícios inúteis são feitos para esconder os anos que se acumulam nos rostos e nos gestos dos mais velhos. Os jovens não precisam fingir ou pintar uma juventude que não existe mais. Eles são jovens mesmo, cheios de vida, de sonhos e de esperanças. Cabe aos adultos colaborar com eles, escutá-los com carinho e amizade. Os jovens, também com as revoltas deles, pedem para ser ajudados, querem saber dos adultos se vale a pena lutar por coisas grandes como a verdade e a justiça, a fraternidade e a paz. O mundo jovem não precisa somente de celulares, computadores, tabletes ou redes sociais e tudo o que eles sabem utilizar com habilidades surpreendentes, eles precisam também dar respostas às perguntas que todo ser humano se faz: se são o dinheiro e o poder que fazem as pessoas felizes, se o amor existe ou se todas as alegrias da vida acabam com o passar dos anos, deixando só feridas e amarguras.

Os jovens querem saber se vale a pena ainda acreditar em Deus, se compensa ser amigos de Jesus e confiar nele. É nesses momentos que os pais, os mestres e a sociedade toda, podem ajudar os jovens a dar um sentido à própria vida. Não somente com conselhos e boas palavras, mas com o exemplo de adultos que vivem e praticam o que cobram dos mais jovens. Precisamos de adultos capazes de transmitir às novas gerações a beleza da vida – e da fé, para quem acredita – para que estas, por sua vez, não somente continuem no mesmo caminho, mas façam ainda mais e sejam melhores. Somente assim os mais velhos deixarão este mundo com o coração em paz e os mais jovens não se esquecerão, tão cedo, dos bons exemplos daqueles que os precederam.

Artigo dominical

Chifres o orelhas
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

Um leão foi ferido pelos chifres de um touro. O rei dos animais baixou uma ordem, então, para expulsar do reino todos os animais que tivessem chifres. Espalhada a notícia, cabras, touros, carneiros, veados, corças, fizeram as suas trouxas e mudaram de ares. Uma lebre que comia grama, vendo a sombra das suas orelhas, achou-a parecida com chifres e resolveu ir embora também, apavorada com a possibilidade que os guardas do rei leão a descobrissem. Antes de se afastar foi despedir-se do amigo grilo que ficou admirado com a decisão da lebre. O grilo tentou de todo jeito fazer a lebre voltar atrás na decisão tomada, mas não conseguiu, pois esta confessara que morria de medo ao pensar que alguém poderia se enganar, pensando que suas orelhas fossem chifres.

Uma historinha antiga e popular para nos lembrar com quanta facilidade e superficialidade, muitas vezes, julgamos os outros e, por consequência, somos julgados. Justamente porque vivemos em comunidade somos objeto dos olhares e das críticas alheias. Em muitos lugares, hoje, lemos avisos com as palavras: “Sorria, você está sendo filmado”. É um alerta para saber que alguém está nos reparando através de uma telecâmera. Talvez não seja sempre verdade, mas é melhor não arriscar. Ninguém gosta de ser surpreendidos por uma multa entregue pelo Correio, ou por um vigilante na saída do Supermercado querendo surrupiar nossa bolsa. Tudo em nome da segurança, podemos até concordar. A questão é que, quase sempre, o olhar dos outros é também um julgamento. A frase poderia ser mudada em: “Sorria, você está sendo julgado”, que não mudaria quase nada, porque é o que acontece. Vendo os outros fazerem alguma coisa, já especulamos o que seja e o porquê o estejam fazendo. Difícil escapar da imaginação dos outros. Obviamente, isso vale também para nós: o que não sabemos, inventamos. Se depois a bisbilhotice eletrônica se espalha com a velocidade da luz, pouco importa. O estrago já foi feito, ou, quem sabe, tenhamos defendido a verdade e desmascarado a mentira.

Nada de mais atual que o caso da mulher do evangelho deste domingo surpreendida em flagrante adultério. Culpa tão grave de merecer, naquele tempo, e com aquelas leis, o apedrejamento. Talvez hoje as pedras que temos nas mãos sejam as mensagens da internet, mas continuam sendo, muitas vezes, fatais. Quantas pessoas sofrem por muito tempo as consequências de uma exposição caluniosa ao público ávido de novidades e de escândalos. Raramente, depois, dá para desfazer o mal causado.

Como cristãos devemos ser sábios e prudentes. Não somente pelas palavras de Jesus: “Quem é sem pecado atire a primeira pedra” (Jo 8,  ), mas sobretudo para não confundir o pecado com o pecador. É verdade que o pecado existe porque existe quem o pratica e, portanto, é algo de real e não uma mera ficção. No entanto Jesus nos lembra da cura da misericórdia e do perdão justamente para salvar a vida do pecador. “Pois Deus enviou seu Filho ao mundo não para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3,17). Salvação que quer alcançar a todos, também aos que estão julgando a mulher! A eles também Jesus oferece o perdão na condição que se reconheçam pecadores e mudem de vida. O pior para nós todos é quando queremos julgar sem sermos julgados; queremos condenar os outros nos considerando melhores. Talvez sejamos tão responsáveis das coisas erradas do mundo quanto aqueles nossos irmãos que condenamos; não pelo mal que talvez, graças a Deus, não fazemos, mas,  simplesmente, pelo bem que deixamos de fazer.

O mal não é vencido pelas condenações, mas pelo amor que resgata, pela caridade que ajuda a sair das situações perigosas, pela solidariedade que humaniza a vida. Nós cristão acreditamos que nenhum ser humano pode vencer o mal por sua própria conta, precisa se deixar amar – até a morte na cruz – pelo amor de Jesus. Amor gratuito, total, para todos. As palavras finais do evangelho são: “Mulher, ninguém te condenou?… Eu também não te condeno. Podes ir em paz e, de agora em diante, não peque mais”. Hoje podemos dizer, com razão, uns aos outros: Sorria, você está sendo salvado . Pelo amor de Jesus.

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A tentação da curiosidade
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

O dia estava muito quente. Um empregado trabalhava duro no jardim do seu patrão. Sem pensar duas vezes, começou a blasfemar gritando contra Adão e Eva porque, pensava, afinal foram eles a causa de tanto suor e fadiga. O patrão ouviu as suas imprecações, aproximou-se dele e perguntou:

– Por que estás xingando tanto assim Adão e Eva? Aposto que no lugar deles nós também teríamos feito a mesma coisa.

– Eu não – respondeu – irritado o trabalhador – eu teria resistido à tentação!

– Veremos – disse o patrão, e o convidou para o almoço.

Na hora marcada, o empregado apresentou-se à casa do senhor e foi levado a uma sala onde tinha uma mesa preparada com vários tipos de comida. O patrão lhe disse:

– Pode comer tudo o que quiser; somente não deve mexer na vasilha tampada que está no meio da mesa, até a minha volta.

O trabalhador, que estava com muita fome, aproveitou bastante da comida. No entanto, morrendo de curiosidade, não tirava os olhos da vasilha que estava no meio da mesa. O que estava escondido lá dentro? O patrão demorava e ele não resistiu. Bem devagarzinho levantou um pouco a tampa. Imediatamente saiu um rato. O empregado fez de tudo para pegá-lo e colocá-lo de volta. Mas a caçada foi difícil. Pratos caíram no chão e algumas cadeiras foram derrubadas ruidosamente. Com a zoada o patrão voltou e disse, sorrindo, ao seu funcionário:

– Meu amigo, daqui para frente será melhor xingar menos Adão e Eva, viu?

Uma historinha alegre para refletir sobre um assunto muito sério: a fragilidade humana. Cada um de nós tem as suas tentações e todos os dias experimentamos como é difícil resisti-las. Apesar dos alertas da nossa consciência sobre o erro que estamos para cometer, a tentação se apresenta sempre muito atrativa, fácil, vantajosa e sem perigo. Por que não aproveitar? Um pouco de risco também, muitas vezes, em lugar de desanimar, aumenta a vontade de provar a nossa esperteza. Como resistir? São Paulo diria: Quem me libertará deste corpo de morte? Ele mesmo responde: Graças sejam dadas a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor. (cf. Rom 7,24-25).

No primeiro domingo de Quaresma, sempre encontramos um evangelho que nos fala das tentações de Jesus no deserto. Tentações terríveis que o acompanharam a vida inteira. O que estava em jogo era a própria missão dele. Jesus podia ter aproveitado da sua fama de “messias” para chegar ao poder, à riqueza, ao inebriante sucesso humano. Com certeza também alguns dos seus seguidores queriam que ele instaurasse um reino poderoso neste mundo. Um reino onde ele seria o mais importante, onde seria deus! Esta é, e sempre será, a tentação de todo ser humano: aceitar ser criatura limitada e, portanto, admitir a própria dependência de Deus, ou querer ser “deuses” e assim travar uma luta sem fim onde o Outro acaba sendo o eterno rival.

Desde a primeira tentação apresentada pela Bíblia tudo não passa de um grande engano. Deus oferece ao homem e à mulher um jardim para que sejam felizes, dentro dos limites de serem “criaturas” amadas por Ele. Na relação de obediência amorosa a Deus realizarão o sentido de suas vidas. Para serem felizes o homem e a mulher devem confiar em Deus. No entanto não pode ter amor verdadeiro sem liberdade e, portanto, sem uma adesão consciente e responsável. É neste ponto que entra em cena o Tentador. Simplesmente ele distorce para o casal a imagem de Deus. Ele não é nada confiável: Mente – não é verdade que irão morrer – e é ciumento, porque não lhes deixa conhecer o bem e o mal, assim nunca serão como Ele. Os dois caem na tentação, duvidando da palavra de Deus. A opção de toda escolha não é simplesmente entre ter fé ou não tê-la, é entre confiar em Deus ou optar pela própria autossuficiência.

A falta de fé-confiança nos afasta, cada vez mais, de Deus e nos impede de compreender o seu amor. A obediência-confiança total de Jesus ao Pai vence toda tentação e reconduz toda a humanidade, uma vez por todas, ao reencontro com o Deus verdadeiro, rico em misericórdia.

Em Jesus acaba a disputa entre Deus e o homem, porque nele Deus se manifestou plenamente confiável. Para nós é possível novamente corresponder livremente ao amor de Deus, porque Ele mesmo nunca deixou – e nem deixará – de amar a humanidade, mesmo quando é desobediente, revoltada e pecadora. Aí está a força para vencer toda tentação. Muitas vezes, porém, ainda “confiamos” mais nas ilusões do Tentador do que nas Palavras de Deus. A quaresma é sempre um tempo bom para reavivar a nossa fé, para reconstruir em nós a imagem dEle que o mal desfigurou.

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A Meridiana
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

Um rei do Oriente trouxe de uma viagem em terras longínquas uma meridiana para os seus súditos que ainda não conheciam as horas. Aquela invenção mudou a vida das pessoas. Olhando a meridiana, todos aprenderam rapidamente a dividir e a organizar as horas do dia. Começaram a ser diligentes, pontuais e ordenados. Dessa maneira, em poucos anos, o reino prosperou e ficaram ricos. Quando o rei morreu, os súditos, agradecidos, decidiram erigir um monumento que o lembrasse para sempre. A meridiana, também, era o símbolo e a origem das suas riquezas e, portanto, resolveram construir ao redor dela um magnífico templo com a cúpula de ouro. Quando acabaram de fechar a cúpula, os raios do sol não alcançaram mais a meridiana e assim aquele fio de sombra, que havia marcado o tempo, em todos aqueles anos, desapareceu. Em pouco tempo, alguns cidadãos deixaram de ser pontuais, outros faltaram com a diligência e outros voltaram a ter uma vida totalmente desordenada. Cada um resolveu andar pelo seu caminho, fazer as coisas quando e como bem queria, sem mais nenhuma atenção para os outros. O reino todo foi para a ruína.

A moral da história é simples. Aquelas pessoas deram muito valor à meridiana e se esqueceram da luz do sol que, de fato, fazia funcionar o relógio mais antigo do mundo. Isso acontece quando nós não buscamos o sentido mais profundo da vida e dos nossos conhecimentos. Ficamos satisfeitos com as aparências e perdemos a substância. Ocorre também com as pessoas e com as situações que vivemos.

O evangelho deste domingo é a continuação do trecho proclamado na semana passada. Jesus ainda está em Nazaré e o povo fica encantado com as suas palavras.  Devem ter pensado: se, como dizem, este homem tem poderes extraordinários, ele é dos nossos e vai fazer o que nós queremos. A eles não interessava quem era Jesus de verdade, quem o tinha enviado e por quê. Queriam curas, milagres, nada de questionamentos ou compromissos. No entanto Jesus tinha muito mais para lhes dizer. O amor de Deus que ele ensinava não podia ficar exclusivo para uma só aldeia, para um só povo. O Reino de Deus que ele anunciava e resgatava era, e é, muito maior porque é para todos. Com efeito, Deus não distribui privilégios porque quer a fraternidade. Não distingue ninguém com vantagens e regalias porque quer a partilha e a comunhão. O amor do Pai que Jesus manifestava devia chegar até os confins da terra. Todos os pobres e sofredores deviam poder ouvir e acreditar na boa notícia que o Filho amado vinha  comunicar. Todos deviam poder participar da alegria dos pequenos aos quais sempre são desvendados os segredos de Deus.

Se os moradores de Nazaré tivessem acolhido as palavras de Jesus poderiam ter sido os primeiros praticantes do Reino, os primeiros construtores da paz e da justiça. Um exemplo para todos. Mas não foi assim, não quiseram acreditar no profeta que tinha saído deles e que agora os convidava a segui-lo numa missão tão grande, tão nova e… tão perigosa. É sempre muito arriscado querer mudar o mundo e dizer coisas diferentes.  – Quem ele acha que é? – devem ter pensado – Melhor acabar logo com este exaltado antes que faça maiores estragos com as suas ideias e o seu modo de agir! -.  A tentativa de matar Jesus, jogando-o no precipício foi somente uma antecipação do que um dia irá acontecer com ele e o que sempre muitos tentam fazer quando a luz e a esperança do Evangelho interferem nos seus planos tenebrosos de orgulho e de poder.

“E a luz brilha nas trevas e as trevas não conseguiram dominá-la” escreve São João no prólogo do seu evangelho. A luta entre a luz e as trevas continua também na vida de cada um de nós. Quantas vezes achamos melhor apagar esta luz. Mas o resultado é desastroso. Sem a luz de Deus, sem a luz da fé e do amor só podem ganhar o mal, a desordem e a confusão. Como naquele reino onde, sem a luz do sol, a meridiana parou de funcionar. E a ruína foi grande.

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Leis rigorosas existem, o que falta para haver redução no número de mortes no trânsito no Brasil?
Alex João Costa Gomes

joaogomesNos últimos anos temos observado um aumento no rigor das leis de trânsito no país, mas paralelo a isso houve um aumento também no percentual de mortes no trânsito brasileiro. Segundo o Instituto Avante Brasil (IAB) que realiza estudos acerca desse tema, há um crescimento anual de 4% no número de mortes em nossas vias. Entre 2001 e 2010 o crescimento foi de 40,3%. Para o IAB em 2012 a estimativa era de mais de 46 mil mortes, já para 2014 durante a Copa do Mundo teremos, caso esse crescimento continue, mais de 50 mil mortes no trânsito do Brasil. O sinal de alerta já foi ligado a muito tempo.

Com a entrada em vigor da Lei 9.504/97 que é o nosso Código de Trânsito Brasileiro (CTB), houve redução no número de mortes em 1998, foram 30.890 nesse ano, redução considerável em relação a 1997 que foi de 35.620. Em 2008 entra em vigor a Lei 11.705/08, conhecida como Lei Seca, o rigor aumenta e a população fica cautelosa, mas logo o jeitinho brasileiro entra em ação, e formas de burlar a Lei Seca foram criadas. Em 2012 entrou em vigor a Lei 12.760/12, dando mais respaldo aqueles que realizam a fiscalização de condutores dirigindo sob o efeito do álcool. Agora no último dia 23 de janeiro, entrou em vigor a Resolução de nº 432/13 do CONTRAN, dispondo sobre os procedimentos a serem adotados pelas autoridades de trânsito e seus agentes de fiscalização no que tange ao consumo de álcool e a direção veicular, é a chamada Tolerância Zero.

Ao longo dos anos no país normas mais rigorosas foram criadas, citamos alguns exemplos de leis relacionados à questão do consumo de álcool e direção, visto que o número de mortes no trânsito por causa dessa combinação perigosa (álcool e direção) é um fator relevante, além do que estamos no período de carnaval no Brasil, onde o consumo de álcool aumenta, bem como o número de acidentes de trânsito e mortes. No Amapá em 2011 e 2012 não houve mortes no trânsito durante o período carnavalesco (os dias de festas), o poder público tem agido com o objetivo de evitar que isso aconteça, mas é algo que não depende tão somente da vontade e ações dos Órgãos de fiscalização de trânsito. Segundo estudos do DENATRAN o fator humano é preponderante para que aconteçam os acidentes e mortes em nossas vias, são da ordem de 90% (imprudência, negligência e imperícia), 4% são oriundos de falhas mecânicas no veículo e 6% devido às condições da malha viária.

Temos Leis rigorosas, ações integradas do poder público, campanhas de conscientização na mídia, notícias nos meios de comunicação diuturnamente sobre acidentes e mortes no trânsito pelo país, até porque diariamente mais de 130 pessoas perdem a vida em nossas vias, e esse número pode ser bem maior, por ano temos mais de 40 mil mortes, então, o que está faltando para ocorrer uma redução efetiva no número de mortes no trânsito brasileiro? Sinalização, fiscalização, ações educativas ou disciplina consciente? Devemos nos julgar primeiramente, verificar nossas ações para com essa problemática, quem sabe não encontramos uma resposta.

Como é tempo de carnaval, vamos nos divertir, mas com responsabilidade, respeitando as normas vigentes e principalmente a vida.

Alex João Costa Gomes  é Bacharel e Licenciado em História

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Eu fiz a ti
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

 Um santo homem passeava pelas ruas da cidade quando viu, numa esquina, uma criança maltrapilha e suja pedindo esmola. Elevou o seu pensamento a Deus:

– Ó Senhor, como podes permitir uma coisa destas? Suplico-te, faças alguma coisa.

De noite, sentado na poltrona de sua casa, assistiu ao noticiário da TV. Apareceram cenas de violência, de morte, de crianças abandonadas, feridas e doentes. Novamente rezou:

– Ó Senhor, quantos sofrimentos. Eu te peço, faças alguma coisa, por favor!

No silêncio da noite, o Senhor Deus lhe disse claramente:

– Eu já fiz alguma coisa: fiz a ti!

Muitas vezes pensamos que seja obrigação de Deus resolver certos problemas. Ou que Ele tenha ficado indiferente e insensível aos nossos sofrimentos. Chegamos a duvidar do seu amor. Este não é somente um dos mal-entendidos a respeito de Deus, é também a forma mais simples para nos desculparmos e não assumirmos as nossas responsabilidades. Será mesmo que Deus não fez – ou não faz – nada para nos ajudar?

O evangelho deste domingo nos apresenta Jesus voltando à sua cidade natal: Nazaré. Já havia muitas conversas sobre ele; algumas boas, falavam das suas curas e dos seus milagres, outras lembravam a sua família conhecida por todos. Jesus também ensinava. Assim lhe deram para ler e comentar um trecho do livro do profeta Isaías. Animado pelo Espírito, o profeta proclamava em poucas palavras o grande projeto de Deus. Estava comunicando a boa notícia da libertação para todos os que estavam presos pelas correntes da miséria, da opressão, da injustiça, da cegueira. Começava algo de novo; devia ser o tempo no qual se manifestava a bondade e a presença amorosa de Deus junto ao seu povo. Entendemos que eram palavras belíssimas capazes de dar coragem aos desanimados e reacender a esperança nos corações enfraquecidos. A pergunta que surgia, porém, nos corações dos ouvintes era sempre a mesma: “Até quando devemos esperar para que tudo isso aconteça? Talvez ocorra se Deus mesmo vier no meio de nós”. Mas, desta vez, inesperadamente, pela boca de Jesus, um homem igual a eles, bem ali na frente deles, veio a confirmação: “Hoje, se cumpriu esta passagem da Escritura que acabaste de ouvir” (Lc 4,21).

“Hoje”, é a palavra chave para entender não somente esta página do evangelho, mas a própria missão de Jesus. O “hoje” não significa que tudo já está feito e que nada mais tem para fazer. Isso é o que pensam os que acham que Jesus devia ter resolvido todos os problemas uma vez por todas e que, portanto, não devia ter mais sofrimento e injustiça alguma no mundo. A terra já deveria ser um céu. No entanto se ainda não é assim é porque Jesus foi um grande mentiroso e um vendedor de ilusões. Igual aos moradores de Nazaré que ficaram decepcionados com Jesus. Eles teriam gostado muito mais dele se tivesse sido um milagroso salvador da pátria. Pelo jeito, os preconceitos não mudaram muito.

O “hoje” do evangelho de Lucas significa que o tempo da espera terminou, porque agora o próprio Jesus é a boa notícia que Deus está enviando à humanidade. Ele é o “hoje” do Reino, acontecendo. Quem acreditar nele e começar a viver o que ele ensina encontrará a sua própria libertação. Quem seguir a Jesus experimentará o que significa quebrar, primeiro em si mesmo, as correntes do egoísmo e do desamor. Não poderá mais explorar ou escravizar alguém, não poderá mais desprezar um irmão. Será olhos para os cegos, ouvido para os surdos, pernas para os paralíticos, esperança para os tristes e abatidos. Perdoará inimigos e chegará a doar a sua própria vida.

O “hoje” do amor de Deus para com todos já começou, só falta a nossa colaboração, só falta acreditar mais. Falta ter a certeza de que a fraternidade, a paz e a justiça, não são mais impossíveis. Infelizmente continuamos desacreditando na capacidade do amor de transformar o mundo e os corações humanos. Assim não enxergamos o bem que acontece ao nosso redor, a fé que move montanhas, o Reino de Deus, grão de mostarda, crescendo. Em lugar de cobrar de Deus deveríamos acreditar mais no “hoje” do bem e fazê-lo acontecer, aqui e agora, em nossas vidas. Ele nos fez cristãos para isso.

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O rosto de Jesus
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

Um dia o monge Epifânio descobriu que tinha o dom de pintar belíssimos ícones. Queria pintar um que fosse a sua obra prima; queria pintar o rosto de Jesus. Mas onde encontrar um modelo certo que expressasse ao mesmo tempo, sofrimento e alegria, morte e ressurreição, divindade e humanidade? Epifânio não teve mais sossego, viajou a Europa toda perscrutando cada rosto. Nada. O rosto capaz de representar Jesus simplesmente não existia.

Uma noite, porém, quando estava repetindo as palavras do salmo: “A tua face, Senhor, eu procuro. Não me escondas o teu rosto…” pegou no sono. Teve um sonho. Um anjo o reconduzia junto às pessoas que havia encontrado e lhe mostrava um detalhe que tornava aquele rosto semelhante ao de Jesus: a alegria de uma jovem noiva, a inocência de uma criança, o sofrimento de um doente, o medo de um condenado, a bondade de uma mãe, o desânimo de um órfão, a severidade de um juiz, a hilaridade de um menestrel, a misericórdia de um padre, o rosto desfigurado de um leproso.

Epifânio voltou para o seu convento e começou a trabalhar. Um ano depois, o ícone estava pronto e o apresentou ao abade e aos confrades. Todos ficaram boquiabertos e caíram de joelhos. O rosto de Cristo era, simplesmente, maravilhoso; tocava o coração, questionava e alegrava. Inutilmente perguntaram a Epifânio quem tinha sido o modelo.

Ainda hoje podemos somente imaginar o rosto de Jesus. Artistas, santos e poetas continuam livres para representá-lo por meio de todas as artes antigas e modernas. Cada um de nós pode fazer o mesmo. Todos podemos dizer que possuímos o “nosso rosto” de Jesus.  É aquele que fala ao nosso coração. Mas ninguém poderá dizer ter o único e definitivo retrato do Senhor, porque ele não cabe em nenhuma moldura, também se, ao mesmo tempo, deixa-se encontrar por todos. A busca nunca vai acabar. No entanto não é por isso que o conhecemos menos ao ponto de confundi-lo com outros. Os Magos acertaram e adoraram aquele Menino – e somente aquele – com Maria, sua mãe. No meio de tantos que iam receber o batismo de penitência de João Batista, o céu se abriu sobre Jesus – e somente sobre ele – e a voz do Pai falou: “Tu és o meu Filho amado, em ti ponho o meu benquerer”.

Se for verdade que podemos fazer obras de arte diferentes sobre Jesus, ele, no entanto, continua o único Filho amado pelo Pai, da manjedoura de Belém até a cruz e o túmulo vazio da Páscoa. Nós cristãos acreditamos que o único Deus verdadeiro se fez conhecer, em sua plenitude, em Jesus. João na sua primeira carta escreve: “Todo aquele que nega o Filho também não possui o Pai. Quem confessa o Filho possui também o Pai” (1 Jo 2,23) e na segunda: “Todo aquele que se adianta e não permanece na doutrina de Cristo, não possui a Deus. Aquele que permanece na doutrina, esse possui o Pai e o Filho” (2 Jo 9).

Por que tanta insistência nessas citações? Porque estamos vivendo o Ano da Fé e, desde a sua abertura, os católicos são convidados a decorar e rezar os Símbolos de nossa fé: os “credos”. Afinal eles são a ampliação da fórmula do batismo cristão, obedecendo à ordem de Jesus de batizar em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo (cf. Mt 28,19). Lembram-nos o que afirmamos e acreditamos do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ao mesmo tempo, porém, defendem-nos de afirmações erradas, de proclamações que não tem nada a ver com a fé cristã. Uma maneira para nos alertar dos “falsários”, antigos e modernos, daquelas obras de arte que são as “profissões da fé”, os credos, e que nos foram transmitidas de geração em geração. Quem afirmar algo diferente, portanto, está falando de outro Jesus, talvez de outro Deus, é bom sabê-lo.

Podemos continuar a busca por um modelo do rosto de Jesus, mas que bom se ao rezarmos o Credo, ao professarmos sinceramente a nossa fé, caímos de joelho e ficamos admirados e atraídos pelo nosso Deus, agradecidos por ter enviado o seu Filho amado, que, ainda hoje, podemos encontrar, conhecer, amar e seguir.

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Torna-te quem és
Wagner Gomes

Certas pessoas dão mais importância à moldura que ao conteúdo do quadro; mais ao veículo que os transporta do que à paisagem que as rodeia; mais a forma que à essência das coisas e das gentes.

Não quero perder mais tempo com a discussão do “sexo dos anjos”, nas teorias sem praticidade, das práticas sem teor concreto e significativo. Enfim…, não suporto perder meu tempo.

Aprendi com Quintana que, “existe apenas uma idade para sermos felizes, apenas uma época da vida de cada pessoa em que é possível sonhar, fazer planos e ter energia suficiente para os realizar apesar de todas as dificuldades e todos os obstáculos. Uma só idade  para nos encontrarmos com a vida para vivermos apaixonadamente e aproveitarmos tudo com toda a intensidade, sem medo nem culpa de sentir prazer. Fase dourada em que podemos criar e recriar à vida nossa própria imagem e semelhança, vestirmo-nos de todas as cores, experimentar todos os sabores e entregarmo-nos a todos os amores sem preconceitos nem pudor. Tempo de entusiasmo e coragem em que toda a disposição de tentar algo de novo e de novo  quantas vezes for preciso. Essa idade tão fugaz na nossa vida chama-se presente e tem a duração do instante que passa”.

Por outro lado aprendi também a lição do escritor argentino Jorge Luis Borges que no fim da vida encarou “se eu pudesse viver novamente a minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros. Não tentaria ser tão perfeito. Relaxaria mais. Seria mais tolo ainda do que tenho sido. Na verdade, bem poucas coisas levaria a sério… Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais os entardeceres, subiria mais nas montanhas, nadaria mais nos rios. Iria a lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvetes e menos sopa. Teria mais problemas reais e menos problemas imaginários. Eu fui uma destas pessoas que viveu sensata e produtivamente cada minuto de sua vida. Claro que tive momentos de alegria mas, se pudesse voltar a viver, trataria de ter somente bons momentos. Não percam o agora… Se pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço no começo da primavera e continuaria assim até o fim do outono. Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças, se tivesse outra vez uma vida pela frente…”.

Para encerrar e homenagear os amigos e amigas (Ronaldo Serra, Eduardo Correa, Márcia Correa e Vitória Machado) que me acompanharam num recente amanhecer em frente ao Rio Amazonas, e sentindo que o “tempo foge”, compartilho texto de Ricardo Gondim, que me parece bastante elucidativo para quem “precisa viver”, pois a felicidade só acontece em raros momentos de distração:

Tempo que foge!

Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para frente do que já vivi até agora. Sinto-me como aquele menino que ganhou uma bacia de jabuticabas. As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.

Já não tenho tempo para lidar com mediocridades. Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados. Não tolero gabolices. Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.

Já não tenho tempo para projetos megalomaníacos. Não participarei de conferências que estabelecem prazos fixos para reverter a miséria do mundo. Não vou mais a workshops onde se ensina como converter milhões usando uma fórmula de poucos pontos. Não quero que me convidem para eventos de um fim-de-semana com a proposta de abalar o milênio.

Já não tenho tempo para reuniões intermináveis para discutir estatutos, normas, procedimentos parlamentares e regimentos internos. Não gosto de assembléias ordinárias em que as organizações procuram se proteger e perpetuar através de infindáveis detalhes organizacionais.

Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos. Não quero ver os ponteiros do relógio avançando em reuniões de “confrontação”, onde “tiramos fatos à limpo”. Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário do coral.

Já não tenho tempo para debater vírgulas, detalhes gramaticais sutis, ou sobre as diferentes traduções da Bíblia. Não quero ficar explicando porque gosto da Nova Versão Internacional das Escrituras, só porque há um grupo que a considera herética. Minha resposta será curta e delicada: – Gosto, e ponto final! Lembrei-me agora de Mário de Andrade que afirmou: “As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos”. Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos.

Já não tenho tempo para ficar dando explicação aos medianos se estou ou não perdendo a fé, porque admiro a poesia do Chico Buarque e do Vinicius de Moraes; a voz da Maria Bethânia; os livros de Machado de Assis, Thomas Mann, Ernest Hemingway e José Lins do Rego.

Sem muitas jabuticabas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita para a “última hora”; não foge de sua mortalidade, defende a dignidade dos marginalizados, e deseja andar humildemente com Deus. Caminhar perto dessas pessoas nunca será perda de tempo. – Texto extraído do livro “Eu creio, mas tenho dúvidas – a graça de Deus em nossas frágeis certezas”. Editora Ultimato, Viçosa – MG, 2007, p. 102 – 103. (WAGNER GOMES)

Receita para desvotar

RECEITA PARA DESVOTAR
Ruben Bemerguy , advogado

“quando se me impõe a solução de um caso jurídico ou moral, não me detenho em sondar a direção das correntes que me cercam: volto-me para dentro de mim mesmo, e dou livremente a minha opinião, agrade, ou desagrade a minorias, ou maiorias”. (cfr. Rui Barbosa “O dever do Advogado” Fundação Casa de Rui Barbosa, Ed. AIDE, 1994, pág. 43).

O exercício liberal da advocacia, especialmente aos que se dedicam um pouco ao direito administrativo e constitucional, proporciona uma leitura relativamente real da conjuntura política vivida no Estado. É que, muitas vezes, a coincidência de fatos postos a defesa, de tão repetitivos, proporcionam interpretar o ambiente político a que todos estamos sujeitos.

Me refiro, em curtas palavras, ao que observo, a partir de minha profissão, na gestão da saúde pública. O diálogo do Estado com o conjunto dos agentes que atuam na área, sejam pessoas físicas ou jurídicas, servidores públicos ou não, parece ver-se substituído pela desnecessária – essa palavra merece ser sublinhada – e grave violência política – essa também merece – que instrumentaliza um perverso maniqueísmo que, por sua vez, em minha opinião, oculta, ou pelo menos disfarça, o adequado enfrentamento as demandas da saúde pública.

É uma pena que essas demandas, com as quais me deparo e enfrento dia a dia, se limitem a nosso escritório de advocacia e se comprimam em escaninhos forenses sem que se oportunize, por falta de instâncias sociais públicas, um sério debate sobre o comportamento do Estado e seus reflexos em direitos individuais, quando menos.

Ilustro meu sentimento a partir de apenas dois casos concretos:
O Estado do Amapá firmou contrato com empresa (por razões éticas, vez que não tenho autorização para fazê-lo, deixo de registrar o nome que a distingue) para prestação de serviços de tomografia em um hospital público, cedendo, inclusive, além de equipamento, área no interior de hospital público para viabilizar o serviço. A empresa, por sua vez, conduziu também, além de profissionais, outros equipamentos ao local para permitir o desempenho. Entre os equipamentos constavam cadeiras, geladeira, lixeiro, maca, bebedouro, entre o mais. Ocorre que a inadimplência contratual do Estado obrigou a paralização dos serviços e, após intervenção do Ministério Público, nova licitação, para os mesmos serviços, foi feita, sagrando-se vencedora a mesma empresa.

O Estado do Amapá, ao invés de adjudicar a licitação, ou anulá-la se assim motivasse, preferiu a solução mais inapropriada, mais impetuosa, irascível mesmo, e confiscou todos os bens da empresa privada sob o álibi curioso da existência de um “estado de emergência”. Não desconheço que a situação da saúde no Estado é crítica, mas essa debilidade não se eterniza por acaso e não é com a prática truculenta que será superada. O certo que a falta de ternura administrativa levou consigo, manu militare, às cadeiras, geladeira, lixeiro, maca, bebedouro e tudo mais, para atender a urdida emergência. Não teria o Estado do Amapá capacidade de adquirir esses bens por meios próprios e lícitos a qualquer tempo respeitando o patrimônio alheio? Estaria o Estado do Amapá tão fortemente embebecido em gesso a ponto de expor-se ao escárnio administrativo confiscando bens tão vulgares até no comércio local? Se o Estado houvesse optado, o que já seria absurdo, pelo confisco de bens exclusivamente indispensáveis ao início de serviços de saúde urgentes, penso que seria menos cômico. Se o Estado, respeitando a propriedade privada e a livre iniciativa, julgasse absolutamente necessários os bens particulares e, assim, os desapropriasse, pagando previamente a respectiva indenização, seria, do ponto de vista jurídico e político, admissível. Mas confiscar, apreender, tomar a força é um traço repugnante e põe em dúvida biografias. Esse fato foi solucionado por atuação judicial e os bens devolvidos a empresa dona.

A mesma sorte das cadeiras, geladeira, lixeiro, maca, bebedouro, se assentou em outro cliente – também não me é permitido nominar. Este foi citado em uma operação policial e a ordem judicial originária da atuação determinava que fossem afastados os servidores públicos que ocupassem cargos ou funções comissionadas ou que manuseassem recursos públicos. O cliente, muito embora não se enquadrasse em nenhuma das condições, foi sumariamente afastado do exercício da medicina em hospital público pela Secretaria de Saúde do Estado. Comunicado o fato ao juízo, este determinou o retorno do cliente ao serviço público na medida em que não ocupante de cargo ou função comissionada. Ao contrário de cumprir a ordem, em demonstração de pura e desnecessária insolência, o Estado do Amapá justificou a existência de processo administrativo contra o cliente e que o havia afastado para que respondesse ao inquérito fora do serviço público. Notificada a Secretaria de Saúde para que apontasse a que processo administrativo se referia, na medida em que nenhuma notificação havia o cliente recebido, a manifesta truculência sequer acudiu singela resposta ao cidadão. Uma resposta comum, que dissesses estar ele respondendo a uma sindicância, revelasse pelo menos o número do processo. Não. Nem isso. É verdade que essa intransparência administrativa pode parecer simples para as autoridades do Estado do Amapá e um reforço ao discurso que divide o bem do mau, desde que o governo seja o bem. Mas para quem está sendo acusado, o mínimo que pode esperar, independente de sua posição ideológica ou da gravidade ou não da acusação, é que, pelo menos, seja notificado da acusação que sofre para permitir a mais singela defesa. O contrário é o caos.

Não estou aqui a fixar que a empresa, seja ela qual for, está imune a incursão do Estado. Muito menos digo que servidor público não possa ser cautelarmente afastado de suas funções. Não é isso. Se os atos encontram proteção constitucional ou legal, tudo é possível. O que causa indignação, o que se repele, o que veste de luto a democracia mais tenra, é a forma inapta, incivil, de buscar objetivos a custa da razão e do direito que desqualificam a cidadania em proteção a um discurso sazonal, não verdadeiro e muito chato.

Essa experiência, porém, como tudo na vida, tem um lado positivo. A cidade de Macapá espera um novo governo. Os olhos da cidade estão ávidos, não só por uma gestão competente mas, também, que a solução dos pleitos sociais e eventuais conflitos se avie pelo caminho do diálogo, institucional e constitucional. O exemplo do Estado do Amapá, pelo menos ao que agora se vê, não é modelo a ser seguido e merece ser desvotado, se quisermos, em meu sentir, vencer os desafios da saúde pública municipal.