Um poema de Bruno Muniz

Um passeio na orla
Bruno Muniz

Eu vi o rio levando o andor
e um povo envolto às pausas do açaí;
vi das pedras fortes, ido ao norte, um São José,
e um pouco à frente,
ao sorvetear todo o sabor de um bacuri,
sentei a ver cada detalhe do lugar:
“Um pesqueiro quando às águas é doutor?”
“Como o arteiro beira o céu a esculpir!”.
Na boca da noite,
Alcinéa traz os versos ao passar.
Na volta pra casa,
uma rede bambeia ao soluçar do vento
e um vazio mede as horas da maré;
às esquinas paradas no tempo,
uma placa encostada no muro
descama à sombra do sol
que reluz à cor do jambo:
“Bem-vindo a Macapá”.

Bruno Muniz é autor do livro “Cem versos putos sobre mim” (que já li, reli e recomendo) e anuncia para o breve o lançamento de “Depois vá ver o mar”, já aguardado com ansiedade pelos amantes da boa poesia

Chá da tarde

ARRASTA-ME
João Barbosa

O vento arrasta a poeira,
da cidade a ribanceira.
E a água quebra a onda
Sobre a praia bem ordeira.
Ouço gritos,
Vejo vultos
E caminho.
E meus rastros na areia
Pela enchente são apagados.
Mas ando,
Corro
E vôo.
Busco o pico mais alto,
Subo a escada do amor
E olho sobre nossa cabeça.
Pretendo a paz!
E a vejo de asas pequenas,
Fugindo de alguém que a persegue.
Então, me vejo longe
E pequeno para abraça- la.
Mas rasgo de mim um pedaço de amor
E dôo à alguém que ficou.
E que desse amor,
Faça uso como eu
E outros multiplicadores.
Mas que haja mudança no coração
E cabeça do atroz.
E que a paz volte com suas asas
Crescendo sobre nós.

Chá da tarde

Cruzada
Márcia Corrêa

Empunhava a espada
Bradando aos ventos
Sua brutal cruzada
Terras de nunca e ninguém
Matar ou morrer em nome do bem
Matar ou morrer…
Mais matar que morrer
Porque morrer se morre por dentro
E o perdão não tem trégua
É lâmina afiada nas hostes do tempo
Perfura o estômago da besta
Que mora bem no fundo
No desespero da saga de cada um.

(Márcia Corrêa é jornalista, poeta e cronista)

Um poema de Jaci Rocha

Itinerário
Jaci Rocha

Gosto de olhar teu rosto
Sentir teu corpo
Desalinhar meu coração!
Do calor e do frio de estar contigo.

Gosto das piadas loucas,
Do humor pouco convencional
Ainda assim, fecho os olhos,
Desacredito de estar nos teus laços!
Um filme, enredo de um sonho distante, irreal!

Mas eis,
que estou mesmo em teus braços…
E eu já não sei então…
( Dessas coisas de paixão, tenho medo)
Qual a curva, a reta, a seta ou direção?
Neste mundo tão bonito e vago!
Onde a  vida, mais que a razão
Conta seu próprio curso, verdade e itinerário.

(Jaci Rocha é advogada e poeta amapaense. Mantem o blog  A lua não dorme onde publica seus belos poemas.)

Chá da tarde

Coração Fracassado
Waldemiro Gomes (1895-1981)

Meu pobre coração: Tu fracassaste;
Sofreste a desventura de supor,
Que amando tanto quanto tu amaste
Não podia morrer tão grande amor!

Amor de coração de sentimentos;
De dores de saudade, de alegrias;
De comum tão total de pensamentos;
De sonhos a nascer todos os dias!

Amor que se refunde a cada instante;
Exaltando querer: idolatria!
Amor! Tão grande amor!
Amor constante.
Meu pobre coração: tu fracassaste.

Mas sublime na dor e na agonia:
Ao deixar de bater me perdoa.

Chá da tarde

Vem comigo!
Alcinéa Cavalcante

Vem comigo!
Vamos sair por aí plantando alegrias.
Traz um pincel, eu levo a tinta
e pintaremos de verde-esperança
todas as venezianas daquela ruazinha
por onde passeamos tantas vezes de corações dados.

Vem comigo!
Vamos plantar dálias, rosas e margaridas na velha praça
onde dividíamos algodão-doce no arraial do padroeiro
quando ainda tínhamos medo de pecar.

Vem comigo!
Vamos plantar papoulas vermelhas e amarelas nos canteiros da ladeira
para alegrar a cidade e os passantes.
E depois – cansados e felizes – tomaremos um sorvete.
Eu te darei um beijo sabor tucumã
tu retribuirás com um beijo sabor açaí.
Vendo isso, o Anjo que nos acompanha
– cheinho de ciúme – dará de asas
(tu sabes, poeta, os anjos nunca dão de ombros)
mas Deus sorrirá e acenderá sóis na nossa estrada.

Chá da tarde

Ventania
Deusa Ilário

Um vento forte passou por dentro de mim,
varreu o jardim, derrubou os lírios,
esmagou os jasmins.
Adubou o chão…
Semeou perdão…
Arou com amor…
O verde voltou, a semente brotou
e as dálias se encheram de pétalas azuis.
Os olhos cheios de água denunciavam
que a tristeza ali passara
Mas foi o sorriso que mexeu comigo
e acenou com o lenço branco
da saudade.

Chá da tarde

MINHA POESIA
Alcy Araújo
(1924-1989)

A minha poesia, senhor, é a poesia desmembrada
dos homens que olharam o mundo
pela primeira vez;
dos homens que ouviram o rumor do mundo pela primeira vez.
É a poesia das mãos sem trato
na ânsia do progresso.
Ídolos, crenças, tabus, por que?
Se os homens choram suor na construção do mundo
e bocas se comprimem em massa
clamando pelo pão?
A minha poesia tem o ritmo gritante da sinfonia dos porões e dos guindastes,
do grito do estivador vitimado
sob a lingada que se desprendeu,
do desespero sem nome
da prostituta pobre e mãe, do suor meloso da gafieira
do meu bairro sem bangalôs
onde todo mundo diz nomes feios,
bebe cachaça, briga e ama
sem fiscal de salão. – Já viu, senhor, os peitos amolecidos
da empregada da fábrica
que gosta do soldado da polícia? Pois aqueles seios amamentaram
a caboclinha suja e descalça
que vai com a cuia de açaí
no meio da rua poeirenta.
Cuidado, senhor, para o seu automóvel
não atropelar a menina!…