Artigo dominical

O novelo de lã
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

Tinha uma grande festa na corte. No salão mais bonito do palácio, o rei recebia as homenagens e os presentes dos súditos. A fila dos doadores já estava quase no final quando chegou uma pobre mulher idosa, apoiando-se num cajado e arrastando os pés. Carregava um pequeno embrulho. Quando chegou à frente do rei abriu o pacote e lhe ofereceu um simples novelo de lã. Era o presente dela e das duas ovelhas que criava. Todos viram e não conseguiram segurar o riso. Aquele não era presente para um rei. No entanto o soberano aceitou a oferta, cumprimentou a senhora e deu a ordem para iniciar a festa.

A idosa saiu da sala entre os comentários sarcásticos dos convidados e voltou para a sua pobre morada. Quando chegou perto, ficou apavorada. A sua casinha estava toda circundada por soldados que estavam colocando piquetes no chão e estendiam entre eles um fio de lã branca. A mulher pensou que tivessem vindo para prendê-la, porque o rei tinha ficado ofendido com o seu humilde presente. O comandante dos guardas, porém, fez uma reverência para a idosa e disse:

– Por ordem do nosso bom rei toda a terra que poderá ser circundada pelo fio de lã, que você levou para ele, será sua.

Assim a generosa senhora recebeu com a mesma medida com que havia doado.

O sentido da solenidade da Epifania vai muito além da forma literária do relato de uma viagem e do encontro dos Magos com o menino Jesus. Apesar do medo, da inveja e do ódio de Herodes, a Epifania é a festa da luz – a estrela – da alegria e da fé. Sobre os Magos, não sabemos de onde vieram e qual outro caminho pegaram para voltar na terra deles. No entanto eles sempre representarão todos os homens e mulheres de boa vontade que buscam um sentido mais profundo e bonito da vida. Precisamos de luz, porque com ela todos nós enxergamos mais e melhor. Na escuridão da ignorância e da dúvida, é muito difícil acertar o caminho. A alegria é, também, a lógica consequência de quem dá um rumo novo à sua vida, cheio de confiança porque está convencido que é o rumo certo. Por fim, confiança é outro nome da fé, sobretudo quando podemos conhecer mais de perto e melhor o nosso Deus. Por sua vez, a fé se torna luz para as nossas decisões nas encruzilhadas da vida e mantém o nosso coração alegre e esperançoso.

Com efeito, a página do evangelho deste domingo reaviva em nosso coração a esperança que um dia todos os povos da Terra possam vibrar de alegria, felizes por ter encontrado o Senhor, por serem capazes de adorá-lo como ele merece, cheios de gratidão e reconhecimento por tão grande amor. Os Magos manifestam esses sentimentos com os seus presentes: o ouro, o incenso e a mirra. Quem entendeu o dom que Deus nos fez vindo ao nosso encontro com a sua humanidade sente a necessidade de também oferecer algo. Mas o que podemos dar ao nosso Rei que ele já não tenha? Os presentes dos Magos, bem entendemos, nada acrescentam à divindade do Menino Deus, nada mudam da pobreza humana que escolheu, em nada amenizam o seu sofrimento e a sua morte na cruz. Reconhecem, porém, quem ele é e o que irá realizar – e já realizou – para esta humanidade ainda tão temerosa e desconfiada.

“Que tens que não tenhas recebido?” (1 Cor 4,11) pergunta Paulo aos Coríntios. É verdade. Sempre pedimos tanto a Deus, cobramos felicidade, bens, alegria, saúde, vida. Damos tão pouco a ele – e aos pobres – e raramente agradecemos.

Ele não precisa dos nossos presentes, mas eles são uma declaração da nossa fé, um humilde reconhecimento da sua grandeza e do seu amor. Somente assim teremos o coração aberto para receber mais, não numa troca, mas na gratuidade e na generosidade que somente o amor explica. É isso que faz todo presente precioso.

Como o novelo de lã da pobre senhora. O que para os outros era sem valor e objeto de zombaria, para o Rei foi um rico presente, porque junto ao fio de lã estava o coração da mulher. É só o que Jesus nos pede, mas é tão difícil e por isso vale muito.

Bairro do Trem celebra a padroeira

Hoje é dia de Nossa Senhora da Conceição, padroeira do bairro do Trem.  A programação em homenagem à padroeira neste dia começou às 7h  com Missa Solene. Mais tarde, às  16h, tem  Missa Campal e em seguida a tradicional procissão pelo seguinte itinerário: avenida Cônego Domingos Maltêz, rua Hamilton Silva, av. Antonio Coelho de Carvalho, rua Odilardo Silva, av. Cônego Domingos Maltêz. Após a benção prossegue a programação social.
   
Histórico – Nossa Senhora da Conceição, a segunda paróquia criada em Macapá, é constituída atualmente por quatro comunidades: a matriz, no bairro do Trem; Santa Inês, com a igreja na orla do rio Amazonas; Nossa Senhora de Nazaré, no Araxá; e Cristo Rei, no bairro Pedrinhas. O atual pároco é o padre diocesano Fábio Rogério Bezerra Pereira. Uma das festas mais antigas dedicadas à Imaculada Conceição no Amapá ocorre no bairro do Trem, há mais de sessenta anos, desde 1949, na época da primeira capela de madeira erguida no terreno bem em frente à atual sede do Trem Desportivo Clube.
Em maio de 1950 o missionário italiano do PIME (Pontifício Instituto das Missões Exteriores), padre Antonio Cocco lançou a pedra fundamental da nova capela, consagrada e inaugurada em maio de 1954, pelo bispo da então Prelazia de Macapá, Dom Aristides Piróvano, hoje com a monumental torre ao lado esquerdo, a atual igreja Nossa Senhora da Conceição recebe muitos fieis o ano inteiro, especialmente neste período de festividade.

“A festa da Imaculada Conceição é tempo de renovação espiritual, de um novo fervor e ardor missionário. Celebramos o Ano da Fé e nos aproximamos de mais uma Jornada Mundial da Juventude em 2013, ano que para a nossa paróquia será enfatizada a experiência missionária, um ano de aprofundamento da fé em atos”, orienta o pároco padre Fábio Rogério.
O dia 08 de dezembro é quase um feriado nacional porque muitas cidades no Brasil celebram o dia dedicado a Nossa Senhora da Conceição, a exemplo do Amapá: padroeira do bairro do Trem, em Macapá; do município de Calçoene, no extremo norte do Estado; do bairro Comercial, em Santana; da cidade de Afuá/PA, do outro lado do rio Amazonas, e de tantas outras localidades do interior do Estado.

(Texto: Oscar Filho – Pastoral da Comunicação
Foto: Alcinéa)

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A pedra ameaçadora
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

Ninguém sabia se havia sido um anjo ou um demônio a colocar aquela pedra enorme naquele lugar. Ela estava encostada na montanha, mas podia desprender-se dela a qualquer momento e acabar com boa parte da pequena vila que estava no fundo do vale. Os homens tinham acolhido o desafio de vigiar os movimentos da pedra. Todas as noites, um deles subia ao monte com uma lanterna na mão e ficava observando. Se a pedra saísse do lugar, ele devia avisar a população da vila tocando uma trombeta. Podia chover ou soprar o vento, com a lua no céu ou se caísse neve, um homem vigiava para que todos pudessem dormir em paz. Ficar vigiando a pedra era uma grande fadiga, mas também um orgulho. Na manhã seguinte, aquele homem descia do monte e parecia-lhe que toda a vila estivesse sorrindo para ele, agradecida.

 O tempo, porém, passou e trouxe outras satisfações e outros orgulhos. Assim, aos poucos, pareceu inútil aquilo que antes era considerado importante. Havia séculos que a grande pedra estava lá e nunca tinha se mexido, porque deveria cair logo agora? Também, diziam, era tarefa do prefeito pagar um vigia para este trabalho. E o governador? Que ele também ajudasse com o dinheiro público.

 Depois de muitas discussões, os homens decidiram suspender o trabalho da vigilância. Não tinha mais graça nenhuma continuar. Nunca é fácil gostar do próprio dever. A não ser que a pessoa encontre nela mesma o gosto daquilo que faz e cada dia renove o seu compromisso. Aqueles homens eram atraídos demais por prazeres exteriores para procurar razões interiores. Nunca mais ninguém subiu ao monte para conferir. A pedra ainda está lá, mas já desceu um bom metro rumo ao vale.

No início do tempo de Advento, recomeçando o ano litúrgico, somos convidados sempre a ficar atentos e a vigiar. Podemos pensar em coisas pavorosas, mas não é para tanto. Seria suficiente pensar em nossa vida que passa. Ninguém de nós sabe o que nos reserva o futuro. Como sempre serão alegrias e tristezas, momentos bons e momentos difíceis. A nossa vida é uma mistura de tudo isso.

Estar atentos, portanto, pode significar simplesmente dar atenção ao que está acontecendo e saber reconhecer a presença do Senhor que veio no meio de nós, mas sempre vem para oferecer o seu amor a todos. Pensamos nas situações da vida, mas também nas oportunidades que ela nos oferece. Pessoas que encontramos pelos caminhos do mundo; gestos e ações de bem, de bondade, paz e justiça que podemos realizar.

Vigiar, diz-nos o evangelho deste domingo, é fazer de tudo para não nos tornar “insensíveis por causa da gula, da embriaguez e das preocupações da vida”. Parece o retrato da nossa sociedade: todos tão atarefados, tão preocupados, correndo o dia todo, porém cada um atrás dos seus interesses, com a sensibilidade e, portanto, com a consciência entorpecida. Acordamos quando acontece algo de grave e de sério para nós. Se depois é questão de dinheiro, somos supersensíveis. Brigamos até o fim. Raramente nos deixamos envolver com as dificuldades dos irmãos. Falar em bem comum é discurso para candidato idealista; poucas vezes é fruto de uma consciência de cidadania unida à vontade de resolver os problemas juntos, assumindo a responsabilidade, também pessoal, de construir uma sociedade mais justa e fraterna.

O mistério do Natal de Jesus nos lembra da sensibilidade de Deus que continua vendo e ouvindo os clamores do seu povo e decide estar ao lado do pequeno e do pobre, de todo ser humano que deixa de lado o orgulho e reconhece a sua finitude. Somente assim acontece o encontro entre o amor de Deus e a nossa sede de amor. Também naquele tempo os insensíveis, seguros de si, não souberam acolher o Salvador. No entanto é com ele, o Senhor que vem, que sempre aprendemos de novo quanto vale ter um coração sensível e amoroso.

Ficamos sempre atentos, vigiando para nós e para os outros também, antes que a pedra gigantesca do egoísmo e da insensibilidade nos faça parecer inútil amar. Neste caso, a pedra já teria destruído a nossa vida, porque teria rolado do monte até parar em nosso coração. Talvez sem perceber.  

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Três barras de chocolate
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

– Se quiser entrar na nossa gangue deve fazer o que eu mando – falou o chefe do grupo.

Alex queria muito fazer parte da turma, mas estava com medo: nunca havia roubado antes.

– Existe sempre uma primeira vez. – insistiu o chefe – Você não tem escolha.

– O plano é este: – explicou o vice – Nós vamos distrair o velho e você esconde o chocolate no bolso, simples! Se não o fizer é porque você é um covarde medroso.

– Não sou, não – respondeu Alex – vamos lá!

Os três entraram na mercearia onde o velho dono vendia de tudo. O chefe e o vice começaram a olhar as diversas mercadorias, depois perguntaram o quanto custava o tal caderno, a tal caneta e assim por adiante. Do outro lado da mercearia Alex já podia fazer desaparecer algumas barras de chocolate e encher os bolsos. Antes de sair, pagaram o caderno e ainda ganharam umas gomas para mastigar, que o velho dono dava a todas as crianças. Já de fora, correram para se esconder e comer em paz o fruto do golpe.

– Agora você é um dos nossos – proclamou o chefe.

Na manhã seguinte, quando saiu da escola, Alex entrou novamente naquela mercearia. Estendeu ao velho dono uma nota e disse:

– Três barras de chocolate.

– Pode pegar Alex – respondeu o ancião.

– Já as peguei ontem – respondeu o menino – tive que fazê-lo, foi uma prova de coragem.

– O velho pegou a nota, deu-lhe o troco, o chiclete também, e lhe disse:

– Esta, de hoje, foi a sua verdadeira prova de coragem!

Fazer o que muitos outros fazem nos dá segurança; e isto não vale somente para jovens e crianças. Quando estamos em grupo gritamos mais forte, cantamos e, às vezes, dizemos coisas que não teríamos coragem de repetir em casa. Isso acontece num estádio, numa manifestação, num show. No meio da multidão, perdemos a identidade – porque ninguém nos conhece – em troca ganhamos a coragem de fazer loucuras. Temos a impressão que as emoções se multiplicam, choramos e rimos mais, deixamo-nos conduzir pelos outros. Quem começa, ninguém sabe, e nem interessa saber; todos mandam e todos obedecem; a multidão parece uma pessoa só, enfeitiçada. O lado positivo de tudo isso é que também o povo e os pobres, sobretudo, podem manifestar juntos com mais vigor as próprias insatisfações e indignações. A fé também tem os seus momentos de massa. Contudo não podemos nos deixar sempre conduzir pelos outros ou esperar fazer as coisas porque os outros as fazem. No meio da multidão, não podemos desistir da nossa consciência e das motivações pessoais que nos levaram a agir daquela maneira, a participar daquele evento.

No evangelho deste domingo, Jesus olha com compaixão a numerosa multidão que o esperava porque “eram como ovelhas sem pastor”. O povo havia corrido e chegado antes de Jesus e dos apóstolos. O que estavam buscando? O que queriam? Talvez ainda não o soubessem, mas não desistiam de procurar. Em resposta receberam as muitas coisas que Jesus começou a ensinar.

Ainda hoje, uma multidão que se desloca ou que se reúne é sinal de busca. Estão procurando algo, ou têm algo para gritar, que está entalado na garganta. Talvez ainda falte o pastor ou, temos a impressão, são tantos os que se oferecem para orientar e ensinar ao povo, que este fica mais ainda desnorteado. Quando tudo se torna relativo ou confuso é ainda mais difícil discernir quem diz a verdade e quem mente, quem quer o bem do povo e quem quer aproveitar da boa fé dele. Por isso, estar no meio da multidão não significa abdicar da nossa responsabilidade, desistir da própria opinião ou renunciar a uma opção pessoal de fé. Uma comunidade verdadeira não é massa uniforme; ela promove as pessoas e não as anula para que sobressaia m somente alguns líderes iluminados.

Para não perder a nossa identidade, precisamos de momentos de silêncio e de reflexão. Somente interiorizando emoções, sentimentos, anseios, esperanças e fé, podemos manter a nossa personalidade e, com ela, a liberdade de escolha. É justamente para não serem “como ovelhas sem pastor” que Jesus leva os seus amigos para um lugar deserto e afastado. O descanso é também para refletir e enxergar melhor o Pastor a quem querem seguir.

Para entrar no grupo, o nosso amiguinho Alex roubou o chocolate, é verdade, mas depois voltou para pagar. Não se escondeu e nem culpou os outros; a voz da sua consciência falou mais alto.

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O pescador e a sua esposa
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

Numa pequena aldeia de pescadores, onde os homens ficavam longe de casa por muito tempo, pescando com os seus barcos, vigorava uma lei muito antiga e terrível. O adultério era punido com a morte. A esposa que fosse surpreendida traindo o marido devia ser jogada ao mar do alto de um grande recife com as mãos e os pés amarrados. Aconteceu que uma jovem mulher, daquele lugar, acabou traindo o marido que estava pescando em alto mar. O povo da aldeia ficou indignado e decidiu que a lei devia ser aplicada com rigor. Inutilmente a pobre jovem pediu clemência. Amarraram-na e jogaram-na do alto do recife. Porém, antes que ela caísse no mar, uma rede bem forte, apareceu de repente e a segurou. O marido tinha chegado para salvar a sua esposa.

Nenhum incentivo à infidelidade; fique bem claro. Simplesmente o gesto de um pescador que, diretamente interessado no assunto, decidiu resolvê-lo de maneira diferente. O novo e inesperado nos pegam sempre desprevenidos. Pelo fato de não estarmos preparados, a nossa reação é tentar encaixar o “novo” no “velho”, isto é naquilo que já está sob o nosso controle e está conforme os nossos esquemas racionais e “tradicionais”. Afinal, ninguém gosta de ser pego de surpresa, de ter que admitir que não sabe como lidar com o realmente novo.

Voltando a Nazaré, sua cidade natal, Jesus inicialmente é objeto de admiração. Os seus conterrâneos são obrigados a reconhecer a sua sabedoria e os grandes milagres que fazia. Pensando bem, no entanto, decidem que tudo isso estava errado. Jesus é o carpinteiro, um pobre sem-terra – um não proprietário – que vive, portanto, dependendo dos serviços que outros lhe encomendam. Naquela pequena cidade, todos se conhecem e eles sabem muito bem quem é a mãe dele, a família e os demais parentes. Passam da maravilha ao escândalo. Negam o novo, o diferente, o incerto, para ficar com a segurança do velho, do comum, do que parece mais aceitável “porque sempre foi assim”!

Cabe, nesta altura, uma pergunta: afinal, qual seria mesmo a novidade de Jesus que aquele povo encontrou tanta dificuldade para aceitar? É, e será, a dificuldade de sempre: aceitar que Deus possa falar através de um ser humano em tudo semelhante aos outros. Pelos sinais que fazia e os ensinamentos que oferecia, deviam admitir, em Jesus, a presença de alguém superior: se não era o chefe dos demônios, só podia ser…Deus! No entanto, não entrava na cabeça deles que Deus pudesse se apresentar humano, pobre, fraco e humilde. Em lugar de acreditar que em Jesus era o próprio Deus que estava se fazendo conhecer, trocam a alegria da acolhida e da gratidão pelos preconceitos, as categorias e os esquemas de sempre. Estes sim que estão ao alcan ce deles e com eles estão acostumados. Por que mudar? Apesar de todas as promessas e de todas as profecias, um Deus que se fazia homem para ser o irmão – salvador de todos – que vinha para nos tomar pela mão e nos reconduzir ao encontro do Pai; não fazia parte dos planos deles. Essa “novidade” incomodou tanto que, um belo dia, resolveram acabar com ele, pregando-o numa cruz.

As coisas não mudaram muito. Também se dissermos: Se pudesse ver e tocar em Jesus, eu acreditaria – estamos enganando a nós mesmos. Simplesmente estamos adiando a decisão de confiar, ou não, na maneira de Deus ter se feito conhecer naquele homem chamado Jesus. Sempre tentaremos construir um deus segundo os nossos critérios. Um deus ao nosso alcance, que se possa manipular e instrumentalizar. Jesus foi, e continua sendo, novo e diferente demais. Veio para quebrar todos os nossos esquemas, porque Deus é assim, pensa, age, decide, ama até o fim, como fez aquele homem Jesus.

Os adúlteros infiéis somos nós; traímos o Deus vivo e verdadeiro, para seguir os falsos deuses que nós mesmos criamos e construímos porque a estes podemos fazer querer o que nós bem queremos. Estaríamos perdidos se “o noivo”, Jesus, não viesse sempre de novo em nosso socorro jogando a sua rede para nos salvar. Ele é o verdadeiro pescador de homens, porque o Deus da vida quer que “todos sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1 Tm 2,4).

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Ar novo
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

            Depois que o papa João XXIII anunciou a convocação do Concílio que ia se chamar de “Vaticano II”, muitos perguntaram para ele o porquê de tanto trabalho e, sobretudo, se achava que isso ia dar realmente em alguma coisa. As explicações dadas foram muitas, conforme o público ouvinte, mas tem uma anedota que talvez explique mais do que tantos discursos.

 Contam que para responder aos questionamentos dos próprios responsáveis da Cúria Romana, certo dia, o papa João XXIII, estando no seu gabinete, levantou-se da cadeira e, calmamente, dirigiu-se à janela e, abrindo-a, disse: “Eis aqui! É por isso”.

Com esse gesto o papa queria dizer que precisava deixar entrar na Igreja um novo ar, um ar de esperança e de renovação. Mas também a Igreja precisava abrir mais as suas portas e janelas à sociedade em mudança. Aos novos tempos a Igreja devia responder com novo entusiasmo, com uma nova linguagem, numa atitude de escuta e de diálogo.

Ainda hoje, após 50 anos daqueles dias, usamos muito as palavras “novo” e “nova”. Falamos, por exemplo, de “nova” evangelização: “nova em seu ardor, em seus métodos, em sua expressão” (cf. Santo Domingo n. 28,29 e 30). Jesus Cristo é o mesmo “ontem, hoje e sempre”, cantamos no Jubileu do ano 2000, mas para ser conhecido e encontrado pelos homens de hoje precisa, também, falar a linguagem do nosso tempo.

            O domingo no qual fazemos a memória de São Pedro e São Paulo nos dá a possibilidade, todo ano, de refletirmos um pouco sobre a história e a caminhada da nossa Igreja. Este ano, achei oportuno colocar algo que iremos comemorar a partir do dia 11 de outubro. O papa Bento XVI convocou todos os católicos para celebrar o Ano da Fé, a partir desse dia até o domingo de Cristo Rei do ano seguinte (24 de novembro 2013). Tudo isso para celebrar os 50 anos do Concílio Vaticano II. Nessa oportunidade, também, lembraremos os 20 anos da publicação do Catecismo da Igreja Católica, um dos frutos mais preciosos do próprio Concílio.

            Quem pouco conhece da vida e da vitalidade da Igreja católica talvez ache isso saudosismo. Se fosse assim poderíamos dizer o mesmo da memória dos santos e das santas ou, até, de Nosso Senhor Jesus Cristo. No dia em que a Igreja deixar de fazer a memória de Jesus perderá a própria identidade e a própria missão. Com efeito, a tarefa da Igreja, até o fim dos tempos, é, justamente, aquela de manter viva a memória fiel de Jesus Cristo para que todos possam conhecer e acreditar nele. Podemos encontrar e experimentar a presença de Jesus vivo somente na comunidade viva e atuante que se alimenta da sua memória. Nos romances, nos filmes, nas enciclopédias podemos encontrar “informações” sobre Jesus, mas não a pessoa dele que ainda hoje nos fala, chama-nos a segui-lo para participar da sua alegria e nos envia para comunicar aos outros as maravilhas que a fé nele continua fazendo.

            Para ser fiel, a Igreja precisa de uma fé segura, firme e clara. É responsabilidade do sucessor de Pedro zelar pela unidade da Igreja na fé e na comunhão, respeitando as diversidades dos carismas, mas apontando sempre o caminho certo. Jesus prometeu o Espírito Santo para iluminar os passos da sua Igreja. Apesar de a fé ser sempre “penumbra” neste mundo frágil e pecador, os cristãos tem a certeza de não ser enganados a respeito daquilo que devem acreditar. Ao mesmo tempo, uma Igreja viva não fica contemplando a si mesma, mas vai ao encontro de toda a humanidade porque ela mesma é feita de humanidade. Seguindo o exemplo de Paulo, apóstolo dos pagãos, podemos deixar ressoar as primeiras palavras, sempre tocantes, da Constituição sobre a Igreja no Mundo de Hoje do Concílio Vaticano II: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Jesus Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração” (cf. Gaudium et Spes n.1).

            “Ar novo” não é qualquer novidade. Ar novo é a única mensagem da salvação, anunciada numa forma que seja compreensível e cativante também para os homens de hoje, como o foi para tantos cristãos e cristãs dos séculos passados. Ainda hoje, o coração humano busca o Deus verdadeiro. Camuflagens, falsificações, sub-rogados e acomodações sempre existiram e sempre existirão, mas nada se compara com a única fonte de água viva que é Jesus.

Que São Pedro e São Paulo nos ajudem a ser sempre mais testemunhas e missionários do único Senhor Jesus, fiéis à Igreja-comunidade que ele deixou.

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O beijo
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

Um casal de idosos tinha cinquenta anos de casamento. Muitos anos juntos. Casa, trabalho, filhos e netos. Agora, vivendo o tempo da aposentadoria, estavam sentados num banco da estação, esperando a chegada do trem. No banco da frente deles, um casal de jovens namorados se abraçava com carinho. Os dois idosos olhavam tudo em silêncio. Os dois jovens começaram a se beijar. A senhora idosa, procurou levemente a mão do marido e, com um sorriso luminoso, disse-lhe:

– Você poderia fazer o mesmo.

– O quê? Está louca – respondeu o marido – eu nem a conheço!

O marido não entendeu ou fingiu não ter entendido. Deixemos de lado a brincadeira e falemos de São João Batista, pois neste domingo celebramos a solenidade do seu nascimento. Lembrar a criança e as circunstâncias do seu nascimento, no entanto, significa também lembrar os pais idosos: Zacarias e Isabel. Os encontramos no início do evangelho de Lucas e, como bem sabemos, a simplicidade da narração revela uma grande mensagem.

Apresentando a gravidez inesperada de Isabel, o evangelista quer nos preparar a acolher o mais surpreendente de tudo: a gravidez de Maria, mãe de Jesus. As palavras-chave são aquelas do anjo à Maria: “Para Deus nada é impossível” (cf. Lc 1,37) e a pergunta que o povo se fazia a respeito de João: “Que vai ser deste menino?” (cf. Lc 1,66). Os acontecimentos são sinais do amor de Deus que quer manter viva a esperança do povo porque algo de maior ainda está para acontecer: chegou a plenitude dos tempos (cf. Gl 4,4).

Maria, José, Zacarias, Isabel e, mais tarde, também os pastores que, alegres, irão a Belém para encontrar o recém-nascido Salvador, representam os chamados “pobres de Deus”, isto é, os humildes que esperavam ansiosos e confiantes a chegada do Messias.

Os primeiros capítulos do evangelho de Lucas antecipam o drama da acolhida e da rejeição de Jesus. Por que os pobres e os pequenos – os humildes – conseguem vibrar com o nascimento de João e, depois, com o de Jesus? Por que Deus, com eles, consegue fazer maravilhas e eles enxergam a novidade, acreditam, adoram e se rejubilam? Justamente porque são “pobres”. Eles não estão apegados a outras riquezas, não têm nenhum poder ou posição humana privilegiada para defender. Eles confiam totalmente e unicamente em Deus. Foi muito diferente para os Herodes, os grandes e os poderosos de todos os grupos do tempo de Jesus. Eles ficaram com medo, primeiro do menino Jesus e depois do profeta que vinha do Norte. Segundo eles, Deus não podia estar do lado de quem mostrava misericórdia, curava os doentes, saciava os famintos, consolava e perdoava os pecadores. Se Deus era Pai, que salvava por amor como ele ensinava, quem teria mais acreditado numa salvação que vinha da obediência rigorosa à Lei?

Já conhecemos o final da história de Jesus. Voltamos a Zacarias e Isabel, os dois pais idosos. Talvez para Maria, muito mais jovem, ter sonhos e esperanças era normal. Talvez todas as moças sonhavam em ser, um dia, mães do Salvador. Mas para os dois “velhos”, tinha sentido ainda “sonhar”, aceitar fazer parte da novidade que estava para acontecer e acreditar que João, o filho inesperado, “dom de Deus” – como diz o nome dele – ia preparar os caminhos para o Messias? Difícil acreditar. No entanto foi isso que aconteceu. As promessas de Deus se realizam sempre para quem acredita e nunca perde a esperança, porque sabe em quem confiou.

Por isso, admiro as pessoas idosas que rezam e participam da própria comunidade. Admiro-as quando falam de Deus aos mais jovens e parecem enxergar e viver as histórias que contam. Admiro-as quando continuam olhando para frente, não mais com a esperança nas coisas humanas, mas já vislumbrando as coisas do alto. Admiro-as quando não parecem estar cansadas como quem chega ao final de uma caminhada, mas animadas como quem está no início de uma nova aventura.

Neste domingo, vamos dizer muito obrigado aos zacarias e às isabeis presentes em nossas famílias e em nossas comunidades. Muitas dessas pessoas continuam, ainda hoje, a serem “pais e mães” de tantos joõesinhos. Todos nos ajudam a acreditar em Deus e a esperar por Ele. Merecem um grande beijo.

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Os frutos
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

Um homem, que buscava a sabedoria, resolveu subir numa montanha onde, a cada dois anos, aparecia Deus. Durante o primeiro ano, alimentou-se com aquilo que o lugar lhe oferecia. Depois, tudo acabou e, não tendo mais nada para comer, teve que voltar para a cidade.

– Deus foi injusto comigo – exclamou – será que Ele não viu que esperei todo esse tempo para ouvir a sua voz? Mas agora estou com fome e vou embora sem tê-lo escutado.

Naquele momento apareceu um anjo que lhe disse:

– Deus teria gostado muito de poder falar com você. Por isso o alimentou um ano inteiro. Esperava que você mesmo providenciasse os seus alimentos para o ano seguinte. Mas, o que você plantou durante o primeiro ano? Se um homem não sabe produzir nenhum fruto lá onde mora, como pode pensar em estar pronto para falar com Deus?

Eis uma pequena história para ajudar, espero, na compreensão das duas parábolas sobre o reino de Deus que encontramos no evangelho deste domingo. A primeira nos lembra que os frutos da terra são também o resultado da própria natureza que cumpre as suas leis. De noite, quando o agricultor dorme, o trigo continua crescendo. A segunda parábola é aquela, bem conhecida, do grão de mostarda. Por ser tão pequeno, não inspira nenhuma confiança; acontece, porém, que, ao crescer, se torna a maior de todas as hortaliças, oferecendo sombra e abrigo aos pássaros.

Podemos aproveitar de ambas as parábolas para entender melhor o jeito “novo” do reino de Deus, que Jesus veio anunciar e iniciar. O reino de Deus é, antes de tudo, um dom oferecido gratuitamente e não pode ser medido pelas aparências ou pelo tamanho delas. Exatamente o contrário das duas grandes tentações que sempre nos atraem.

A primeira é a tentação da grandeza. Julgamos o valor e o resultado das coisas pelo tamanho das construções, pela riqueza acumulada, pelo número dos participantes. Claro que tudo isso nos empolga e nos faz sentir importantes. O sucesso sobe à cabeça de qualquer um; também porque junto com os invejosos sempre aparecem muitos bajuladores que nos enaltecem mais do que merecemos. Como sempre, é a tentação do orgulho que nos cega e ensurdece. Contra essa tentação, Jesus nos alerta a medir as coisas mais pela paciência que pelos resultados imediatamente visíveis. Os tempos do crescimento do reino não são os tempos que deveriam recompensar a nossa dedicação, como pensamos.

Do outro lado, se o reino é “dom” de Deus, por que nos esforçarmos tanto? Esta é a segunda tentação: esperar que Deus faça a parte dele – e Ele a faz com certeza – sem nenhuma colaboração ou participação de nossa parte; só aguardando para ver se tudo vai ser tão bom como foi prometido. Nesse caso são a preguiça e a indiferença que tomam conta da nossa vida de cristãos.

Resumindo os dois extremos: temos cristãos que medem as “coisas” de Deus com as mesmas medidas das coisas humanas, isto é, com o sucesso, a fama, a grandeza. O reino cresce em outras dimensões: no amor, na paz e na justiça, por exemplo. Cresce, sobretudo, no coração dos que têm fé. Temos também cristãos que não ligam para nada, cobram e exigem de Deus sem nenhum compromisso pessoal e concreto. Gratuidade não significa absolutamente acomodação e inatividade.

Em ambos os casos, a nossa participação deve ser ativa e confiante. É verdade que o trigo cresce também de noite, quando o agricultor repousa, contudo, cabe ao agricultor a colheita, para que o campo possa continuar a produzir mais frutos.  Pensando bem, a humildade e a gratidão deveriam ser os primeiros “produtos” da colheita. Outros podem ser a partilha e a solidariedade, para não cair no pecado do rico tolo que só pensava em aproveitar das riquezas acumuladas (cf. Lc 12,16-21).

Sempre teremos que agradecer e sempre teremos que trabalhar. Os frutos sempre serão, ao mesmo tempo, um dom de Deus e uma busca incansável de nossa parte. Não deve acontecer como ao homem que queria ouvir a Deus; aproveitou da fartura encontrada, mas esqueceu de plantar para o futuro. O reino de Deus sempre será dom e compromisso: nunca será só um presente para preguiçosos e acomodados. Menos ainda para os orgulhosos.

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O pássaro com duas cabeças
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá

Certa vez, num lugar deste mundo, nasceu um pássaro com duas cabeças e um corpo só. A cabeça direita era sempre faminta, muito esperta em encontrar comida e devorava tudo o que encontrava com uma velocidade extraordinária. A cabeça esquerda era também faminta, na mesma proporção da outra, mas era desajeitada nos movimentos e, na hora de comer, chegava atrasada. Dificilmente sobrava alguma coisa para ela. Desse jeito, a cabeça direita conseguia sempre satisfazer a sua fome; a esquerda, nunca, por isso morria de inveja e cansou de ficar para trás, assim elaborou uma estratégia assassina. Um dia falou à cabeça direita:

– Conheço, aqui por perto, um lugar onde existe uma grama muito gostosa; não queria experimentar?

Na realidade, a cabeça esquerda tinha feito uma pesquisa detalhada para ter  certeza de que aquela grama era venenosa e mortal. Assim a cabeça direita logo que viu as verdes plantinhas caiu sobre elas e, como sempre, comeu rapidamente e à vontade. A cabeça esquerda não teve tempo de ver as consequências da sua jogada, porque o único corpo morreu, poucos minutos depois, junto com as duas inseparáveis cabeças.

Bem sabemos que as palavras e as atitudes de Jesus deixavam incomodados muitos daqueles que não aceitavam ser questionados sobre a própria religião e a maneira de vivê-la. Em lugar de fazerem um autojulgamento, era muito mais fácil, para eles, acusar aquele pregador, que vinha de fora, de ser “possuído por um espírito mau”, por Belzebu, “o príncipe dos demônios”. Sendo assim, nada de bom podia vir de Jesus, tudo o que ele fazia e dizia era obra do “diabo” e, por consequência, errado, “mau”. Jesus respondeu com a comparação de um reino dividido. Inevitavelmente, divisões e disputas internas são causa de fraqueza e de derrota. As palavras dele devolveram a acusação: onde estava o “espírito mau”? Nos acusadores ou nos gestos dele, que libertavam e curavam as pessoas? Se o que Jesus fazia era um bem, não podia ser obra do “príncipe dos demônios”, somente podia ser obra de Deus, mas isso significava admitir e reconhecer que o próprio Deus estava agindo nele! Então Jesus era “possuído” pelo Espírito de Deus, não pelo demônio.

A nossa reflexão, porém, não pode parar por aqui. Se é verdade que toda cura, que seja ou não extraordinária, é algo de bom e desejável – e, portanto, devemos agradecer ao Senhor pela sua bondade quando as curas acontecem – não podemos deixar de lembrar que Jesus não quis ser um simples curandeiro ou milagreiro. Os gestos dele são sinais para nos apontar algo que está além e que é mais precioso. Não devemos procurar o Senhor somente pelas curas físicas ou psicológicas, para que ele preencha as nossas carências emocionais ou afetivas. A grande doença da qual Jesus quer nos curar é o pecado, o mal que cega os nossos olhos e o nosso coração. A busca individual do nosso bem-estar e do nosso sucesso pessoal é a causa de tantos males, mesmo quando não queremos admiti-lo, porque enxergamos somente o que nos interessa.

A oração que Jesus nos ensinou é sempre e toda no plural. O Pai é “nosso”, não “meu”. O Reino é para todos nós. O pão de cada dia, também, é “nosso”, porque todos precisamos nos alimentar. Por fim, o perdão ao irmão é o fruto do perdão de Deus oferecido a todos. O demônio nos conduz a pensar no “meu” de cada um. Assim nascem os conflitos e as disputas. Assim Caim matou Abel. O Filho que o Pai enviou nos quer  irmãos, porque todos somos amados e podemos aprender a amar. A fé que Jesus praticou e ensinou foi a de amar a Deus amando também o próximo. Com a sua vida doada nos curou da doença mortal do não amor. Quem sabe amar o seu próximo ama o Pai, cumpre a sua vontade e entra a fazer parte da nova “família” de Jesus.

Ela não tinha tempo nem para comer. A cabeça comilona não deixava nada para a outra. Assim nasceu a inveja que levou as duas à morte. O “milagre” da partilha teria salvado o corpo inteiro.